Deixo uma cidade e levo uma casa | Anthony Almeida

 Anthony Almeida__

 

Photo by Mantas Hesthaven on Unsplash

Deixo uma cidade que me é quente e seca. Quando vim, precisava aquecer o coração e secar meus olhos encharcados. Vou-me e levo os olhos novamente encharcados. Mas, é bom que se diga, e dizendo eu me ouço, que antes das lágrimas da partida, esses olhos brilharam. Muito. Levo, ainda, o coração bem quentinho. Deixo a cidade que me acolheu. Levo a cidade que me acolheu.


Deixo a cidade quando já havia deixado de dizer que não sei, não sou daqui, cheguei faz pouco tempo, para alguém que me parava na rua e me pedia informação. Deixo-a dias depois de ter ensinado ao motorista duma van que, para chegar aonde ele queria, bastava seguir em frente, dobrar à esquerda, passar pela estação ferroviária, fazer o cotovelo e dobrar à direita na esquina da delegacia, daí era só seguir em frente até a praça e fazer a rotatória.


Deixo de saber qual é a pizza mais gostosa da cidade e qual é a mais barata dentre as gostosas. Deixo três cartões de "junte dez e ganhe uma". Levo a conquista de já ter juntado dez, de ter ganho uma; mais dez e mais outra. Levo a barriga paulatinamente adquirida por todas essas pizzas. Levo a história de que morei num lugar em que há uma Pizza Pizzo's, e Pizzo é mesmo o sobrenome da família que toca o negócio. (Levo, no ônibus de partida, uma tapaué com três fatias da mais barata dentre as gostosas).


Deixo um quarto que foi escritório, com mesa bonita e cheia das minhas bagunças. Levo meia bagunça, espremida na mala. Deixo potinho de vidro, com clipes de papel e lacres de latinhas de refrigerante, para que o caminhão da coleta seletiva o leve embora. Levo, além das fatias de pizza, um salgado e as cédulas trocadas pelas moedas que guardei noutro potinho: troque seus centavos, a cada cinquenta reais, uma esfiha grátis. Deixo a estante e levo os 188 livros que a povoavam. Eles vão comigo num quarteto de caixas, empilhadas sobre dois carrinhos maleiros e presas com elásticos para bagageiro.


Deixo um banheiro com chuveiro elétrico. Levo o orgulho de ter ligado ele na rede com um conector de porcelana, ao invés de amarrar os fios com fita isolante. Levo a certeza de que meu curso técnico de eletromecânica não foi feito em vão. Deixo umas tomadas sem funcionar, porque não sabia como ajeitar. Levo a dúvida da validade do tal curso técnico.


Deixo a sala miúda com duas lâmpadas e um ventilador de teto. Deixo a cozinha grande, quente, sem ventilador e com apenas uma lâmpada. Levo a vontade de colocar o fogão na sala e o sofá na cozinha. Levo o corpo descansado das centenas de cochilos tirados no sofá. Levo esse corpo alimentado pelas milhares de refeições feitas na mesa de jantar ou no próprio sofá. Deixo a parede suja com o ketchup de uma fatia de pizza que escorregou das mãos.


Deixo um quarto, as carícias e cafunés que nele dei e recebi. Deixo a sua janela que dava para o sol nascente. Levo sete pares de meia, que deveriam ser bem mais; três camisas de botão; seis calças jeans, nenhuma preta; três shorts; duas bermudas, poderia levar mais uma, preta; dezesseis cuecas, uma delas meio furada, relaxada e confortavelmente perfeita para o sono; um moletom; dois agasalhos; jaqueta jeans com bacaníssimos bolsos internos; oito camisetas caseiras, algumas pretas; sete camisetas rueiras, não tantas pretas quanto eu gostaria; uma caixa com cinquenta máscaras descartáveis e duas máscaras profissionais, para não levar o coronavírus no meu peito; uma sandália de dedo e outra de couro; quatro pares de tênis, a lama e as folhas de grama do chão da cidade num deles; uma gratidão e uma esperança.


Deixo uma cidade, mas levo muitos sedimentos dela comigo. Erodi-a e construí meu caminho. Arrasto pedaços de muitas coisas que encontrei pelo percurso e deixo muitas que não conseguiria carregar. Deixo a cidade que me acolheu. Levo a cidade que me acolheu.

 

Presidente Venceslau. Agosto, 2022.

 




Anthony Almeida é professor, cronista e cartofilista. Nasceu em Caruaru/PE e ainda não sabe onde residirá, talvez Recife, talvez Olinda, talvez RecifOlinda/PE. Pesquisa a Geografia Literária, escreve e estuda a crônica brasileira. É cronista do Jornal Tribuna Livre, da Revista Mirada, doutorando em Geografia, pela UFPE, e editor adjunto da RUBEM – Revista da Crônica. Contato: anthonypaalmeida@gmail.com