Para além | Adriano Espíndola Santos

 por Adriano |Espíndola Santos__

 

Foto: Brian Matangelo on Unsplash

Havia clamor e dor no olhar. Havia uma barriga morta, invertida; pele e sustância poucas. Era apenas um menino de onze anos, que batalhava para sustentar a família de seis irmãos. O pai era “bom”, para os seus termos, mas mundano e alcoólatra; quase nada o via. A mãe, um poço de achaques verdadeiros e imaginados, guerreava com o vento, com o que se encostasse nela. Vito pensava nos irmãos, compreendendo que eles não tinham culpa do fado. Vito queria que cada um tivesse sucesso na vida, contudo não sabia como; qual era a fórmula. Nos sinais, morando nas ruas, via uma ruma de carros a passar, com seus motoristas vistosos, e queria parar e conversar com algum desses, para descobrir o caminho. Quando o viam, viravam a cabeça ou afetavam maneiras de pouco-caso. Numa tarde, na calçada, de frente para um boteco, assistiu na televisão a uma entrevista de um antigo morador de rua que estudara por materiais descartados e que, com isso, teria ingressado numa repartição pública. Vito não sabia o que era concurso nem repartição pública. Perguntou a um senhor desconfiado, só, que virava copos de cerveja. “Sei lá, moleque, chispa daqui!”. Andou, andou, procurando elucidações – recorreu, inadvertidamente, à técnica do inconsciente. Deitou-se embaixo de uma árvore. Estava com fome e sentia urgência em dormir. Sonhou com um troço esquisito: que morava numa mansão, de frente para o mar, no entanto não podia usufruir dos objetos ali dispostos; havia um vidro/barreira que os separava. Podia ver, e isso lhe bastava. Aí, não reconhecia dor, fome, sensações de morte, que invariavelmente o perseguiam. Acordou da forma contumaz, com um chute no rosto, desferido por um sujeito que já corria a léguas do local. Chorou o engodo de tudo. Não havia mais lágrimas, a água era contada para a sobrevivência do corpo. Apanhou um dente quebrado na mão; mais um. Em cinco ou seis anos, talvez, não restasse um osso na boca. Pensou em se matar, em jogar-se de encontro a um carro qualquer, e logo lembrou-se do sonho, vivo, singular. Era, quiçá, a resposta de um deus que não existia, que nunca o salvara das aflições. Era, dentre tantos, um jeito penoso de revelar a verdade – ou a mentira. Fora surpreendido por uma senhora, com um prato de comida nas mãos; dizia ser do serviço social. Fez mil perguntas, sem o deixar comer em paz. Do meio para o fim, o menino já estava convencido de que iria para um abrigo, “pelo menos para conhecer”. Antes de botar o pé no carro enfeitado, sentiu o peso de ser o irmão mais velho, o arrimo de uma família esfacelada. Uma vez, determinou, pensaria em si. Seguiu, para ver no que daria. Rezava pela bênção de ter ao menos um prato de comida por dia, sem a necessidade de se humilhar. Quedou, por vontade própria, alguns tempos no abrigo. A assistente social, cheia de dedos, informou-lhe que era preciso estudar, que era o melhor que poderia fazer para ele. Aceitou, não havia meios. Tinha medo. Lembrou-se do sonho; era lá que deveria chegar. Estudou constrito, paciente. Esforçava-se para acompanhar os alunos do primeiro ano. Juntou-se à Gabriela e ao Samuel, dois coleguinhas menores, que moravam com uma família postiça; diziam que logo seriam adotados. Pensou que ninguém o queria – e tinha razão de pensar assim, pois sofrera muito nas ruas de vielas e teias forjadas em fogo. A assistente disse que, para ser adotado, seus pais teriam de perder o poder familiar que possuíam. Ele argumentava que não tinha documentos e que os pais não o queriam de fato; era só no mundo. Abriu-se um processo para liberá-lo do tal pátrio poder e para adquirir documentos essenciais, como CPF e certidão de nascimento. Em um ano, estava livre para a adoção, mas quem queria um menino de doze anos? Foi localizado por uma família holandesa, que não possuía filhos. Conheceu os pretensos pais em dois meses. Com mais oito meses, num processo excepcionalmente célere, mudou-se para Zoutelande, numa casa de frente para o mar, igualzinha à que sonhara nos momentos de desespero. Não havia dificuldade na comunicação, riam-se, todas as horas dos dias. Compelido pela dor, ajuizou que não merecia, que seus irmãos estariam sofrendo; que ele deveria sofrer. Mas logo o pai lhe entregou um cap de aviador e mostrou-lhe um horizonte para voar.

 

 



Adriano Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, e em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, estes pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com as Revistas Samizdat e Vício Velho. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto. Instagram/adrianobespindolasantos | facebook/adrianobespindolasantos  | Email: adrianobespindolasantos@gmail.com