Era vidro e se quebrou | Muriel Cristina Vieira

 por Muriel Cristina Vieira__

 



Pela espaçosa janela de madeira era possível ver um pôr-do-sol arroxeado, que incorporava tons laranjas conforme se aproximava do horizonte até, finalmente, se extinguir, conforme o sol se deitava no oceano. Havia o vento e o cheiro salgado que reside na orla, poucas pessoas passeavam na faixa de areia branca e, em meu coração, residia o sentimento de que havia conquistado, enfim, tudo o que busquei durante os meus 68 anos de existência.


                Agora, eu finalmente residia em uma bela casa, com pé direito imenso e uma lareira requintada – um sonho de juventude. Tudo financiado por anos e anos debruçada sobre uma mesa, escrevendo frases que, em alguns casos, me inspiraram; em outros, me fizeram definhar por dias, com receio de que, ao abrir a porta do meu escritório, trombasse com fantasmas que nasciam das minhas próprias linhas manchadas de tinta. Não eram, originalmente, romances de terror, mas sem dúvidas eram fruto de uma mente com medo e, justamente por isso, possuíam o dom natural, quase simbólico, de provocar arrepios nos leitores mais sensíveis.


                Me tornei famosa por essa inclinação ao absurdo, pelas desconexas frases que, misteriosamente, faziam sentido para todo mundo. Possivelmente, porque a realidade não faz real sentido para quase ninguém, nunca havia feito para mim, motivo pelo qual optei pelo envolvente ambiente do gabinete.


                Minha porta bate. Uma caixa cai e posso escutar um som abafado de estilhaços. Provavelmente, uma dúzia de pratos acabam de partir dessa para uma melhor, quase acompanhados pelo carregador da mudança que acaba de derrubar o caixote e agora me encara com um rosto pálido e desesperado.


– Não se preocupe, são coisas velhas, está tudo bem – lhe digo. Não tenho mais a disposição física para me enfurecer com coisas que partem, quebram, rompem. Com o tempo, nos tornamos um mosaico tão delicado de pequenos cacos, mantidos em unidade sabe-se lá Deus por qual força, que a flexibilidade vira um fato, e nos dobramos facilmente à vontade da vida. Resta uma espécie de silêncio que, ao invés do vazio angustiante experimentado na juventude, passa a ser um tipo de névoa, a preencher os cômodos da casa, as gavetas esvaziadas, o café da manhã aos domingos.


O pobre coitado deposita o pacote sobre a mesa e sai apressado, redobrando o cuidado com o resto da entrega. Vamos verificar o estrago, penso, e posso sentir os pequenos pedaços de vidro misturados aos meus livros antigos, alfinetando as pontas gastas dos meus dedos. A maioria das pessoas tem medo da dor excruciante dos cortes profundos, já eu, por uma estranheza de nascença, costumo me incomodar mais com o farelo invisível do vidro partido, essas partículas que penetram e, embora não sangrem, persistentemente fazem da nossa pele a sua morada, tornando os toques doloridos e os movimentos limitados. Ainda assim, é preciso limpar a bagunça. Ao tocar em todos os pertences, meus, acumulados durante uma vida e depositados na minha bagagem, estou ciente de que os machucados serão inevitáveis.

Com o auxílio de um pano vou acariciando as capas e as lombadas, separando as memórias e revendo uma porção de objetos de que já não me lembrava. Minha nova sala está repleta de sacos, malas e badalhocas. O som das ondas do mar, do lado de fora da janela, parece caçoar de todas as coisas que acumulei ao longo desses anos, e que acabei por trazer comigo para esse novo lugar, carregando a minha bagunça enquanto sigo em busca da paz.

É o que sempre fiz, afinal. Uma nova casa, uma nova carreira, um grupo de amigos diferente, um novo amor. Com frequência, cometemos o erro de “trocar as roupagens” que vestem um mesmo boneco, disfarçando de novidade um self que permanece o mesmo. Perdemos as verdadeiras oportunidades de recomeçar porque despejamos em nossos começos o entulho do passado. Sei disso agora, enquanto retiro o último objeto da caixa e constato quem é o defunto acidentado: um porta-retrato antigo.

Se me lembro bem, o ano era 1962, num dia chuvoso de primavera. Ao fundo há a vegetação de um parque qualquer, daqueles que costumava frequentar com meus amigos e companheiros de escrita. Há uma expressão irritada no meu rosto jovem, que certamente advinha do barro subindo quase até os meus joelhos. Eu disse a ele que um parque num dia chuvoso era uma ideia ruim e, provavelmente, fui vencida com algum tipo de argumento divertido.

Carreguei, inutilmente, essa fotografia por toda a minha vida adulta. Uma espécie de memorial, de assunto que jamais é discutido. Quando visitas vinham até as várias casas em que morei e, ao verem a imagem, me perguntavam quem era a pessoa ali, comigo, dizia que era um primo distante, um colega da faculdade, já não me lembrava o nome. Um fantasma, que dizia respeito a quem eu era naquela lembrança, flutuava por sobre as falsas vanguardas que eu buscava construir.

Tiro os olhos da fotografia por um breve momento e retorno para a janela. O escuro, decorrente do avançado da hora, transforma a portinhola em um espelho, onde posso ver meu reflexo envelhecido. Os meus olhos, por outro lado, continuam os mesmos, e é neles em que me concentro. Um respiro profundo. Um segundo inspirar. Posso imaginar aquela menina me encarando na janela. Seus lábios se movem. – Se quebrou nesta casa, neste dia. É um sinal, jogue fora!

O entregador chama a minha atenção repousando a última caixa no chão.

– Acabamos por aqui, Dona. Precisa de mais alguma coisa?

Respiro fundo e, dessa vez, o sorriso de desculpas é todo meu: – Podem levar as caixas para fora de novo, por favor? Seu nome é Rogério, certo? Seu Rogério, você conhece algum bom lugar para fazer doações?

 



Muriel Cristina Vieira - Graduada em História pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (Eflch/Unifesp), com ênfase em História Moderna e História da Justiça e do Direito, onde integrou o Núcleo de Estudos Ibéricos e o Centro de Pesquisa em Probabilismo e Retórica Jurídica (CEPPRO). Escritora, pesquisadora e apaixonada por Literatura.