Cose di Roma | Luiz Henrique Gurgel

 

por Luiz Henrique Gurgel___


Fotos: Egor Myznik, Quaritsch e Stefano Segato 


Quem gosta de vagar incerto, sem rumo, com sentidos soltos e abertos para o que encontrar, acha. Eu atravessava devagar a Ponte Sant'Angelo, misturando preguiçosamente histórias e pensando nos quase dois mil anos daquele percurso com ponte, castelo, estátuas, imaginando os executados dependurados ali, séculos atrás, e até procurando o ponto em que Tosca poderia ter se jogado lá de cima do castelo. Não que eu conheça ópera, vi três ou quatro na vida, incluindo essa em vídeo, mas vadiagem é um negócio deslumbrante.

 

Difícil era ter pensamentos edificantes e andar com algum sossego naquela babel de camelôs oferecendo uma infinidade de bugigangas, perfumes, bolsas vuitton não-sei-das-quantas e ainda esbarrando em manadas de turistas com suas máquinas fotográficas e filmadoras, em fila atrás de guias com um mini porta-estandarte na mão para ninguém se perder do rebanho.

 

Não tropecei em nada, não esbarrei em ninguém, sem rumo segui a esmo até cair numa rua com indicação para a Piazza Navona, além de outras tantas vielas sedutoras chamando para me perder entre elas, sem pressa, contemplando o que fosse possível. Quando dei por mim a multidão sumira. Para a Piazza Navona, certamente.

 

Feliz entre pequenos caminhos que se bifurcam, num deles, um beco, chamou a atenção um típico casal romano, sessenta e alguns anos, talvez, sentados à entrada de um restaurante. Mais a mulher do que o homem, na verdade. Ela mantinha um cigarro suspenso entre os dedos, bem para trás das nódoas, excessivamente maquiada, lápis preto acentuando os olhos claros, cabelos também muito pretos, tingimento bem feito, quase natural para um leigo. Os detalhes marcantes estavam nas plásticas - vencidas - das maçãs do rosto e dos lábios exageradamente carnudos. Então essas personagens fellinianas existem mesmo. Havia certa elegância na senhora de olhar duro e voz rouca de fumante. Falava com o homem sem desviar o rosto, no máximo inclinava o pescoço para cima, evitando soltar a fumaça na cara dele. Rosto de Medeia envelhecida e aí pensei que ela podia ter sido figurante no filme de Pasolini e ter trabalhado ao lado de Maria Callas ou, noutra hipótese, em Calígula, aquele pornô histórico da minha adolescência.

 

Passei devagar, como mais um basbaque (desculpe, mas adoro essas palavras em desuso) fazendo seu dolce far niente na “Cidade Eterna”. Fiz a curva da viela, perdi o restaurante de vista, dando de cara com uma piazzeta, dessas que se abrem de becos escuros e terminam em outros becos escuros. Resolvi voltar, o homem não estava mais e a matrona, em pé, orientava um garçom na arrumação das mesas do lado de fora do prédio. Agora o cigarro branco na boca contrastava com o batom rouge dos lábios enxertados.

 

O rapaz me atendeu com gentileza e paciência diante da indecisão de onde me sentar, apesar de haver, no máximo, umas dez ou doze mesas no salão. Depois, nova demora para a escolha do prato, tentando me comunicar num italiano aprendido em guia para turista, misturado ao espanhol com português, mímica, tudo ao mesmo tempo. Ele perguntou se eu era francês. Eu? Sempre achei que na minha faccia era inconfundível a mistura de cearense com ítalo-caipira-paulista. O inglês do rapaz, macarrônico legítimo, também não ajudava, ainda mais porque eu não falava o idioma. Mas chegamos, enfim, a um acordo sobre o que eu ia comer. Estranho que depois de tanto malabarismo verbal e gesticulação – ou justamente por isso - parecia que ele me compreendia perfeitamente. Toda a conferência aconteceu sob os olhares vigilantes, orgulhosos e dissimulados da matrona.

 

Comida e vinho maravilhosos. Já me entendia muito mais que satisfatoriamente com o garçom. Foi assim que soube que havia uma eleição acontecendo naquele dia. Fora os cartazes afixados em pequenos tapumes, não havia o menor sinal de campanha política, com distribuição de folhetos, muros pintados, carros de som, comícios, nada do que brasileiros estão acostumados. O simpático garçom não gostava de política e nem tinha ido votar. Percebeu minha admiração com o salão estreito, de pé direito muito alto. Foi assim que começou a contar a melhor parte dessa história.

 

O ristorante ficava numa parte do centro histórico de Roma – o mais antigo, quero dizer – e aquele prédio era, obviamente, pra lá de centenário. A matrona vigilante veio participar da conversa. Disse que o térreo e provavelmente a sobreloja, eram do Quattrocento. O primeiro andar, acima da sobreloja, era do Settecento. E o ristorante fora “aperto nel millenovecento e quaranta, en la guerra”. À saída de cena da signora, o garçom retoma a participação e conta que ela havia feito uma grande reforma no estabelecimento. E como normalmente acontece em Roma, acabaram por descobrir no subsolo do prédio portas e corredores que ninguém sabia onde iam dar. “Cose di Roma, tutti construto palazzo sul palazzo”, disse o rapaz sem responder a mais nenhuma pergunta, só repetindo “Cose di Roma, cose di Roma”.

 

A ideia de que eu estava sentado metros acima de misteriosos corredores atiçou a curiosidade. Fiquei sondando o salão enquanto comia. Inventei de ir ao banheiro, atrás de uma cortina estava o caminho. O garçom me explicou: “À sinistra, signore, scendendo una scala lunga ma non troppo, poi, a destra, l´altro scala piccola e pronto, Il bagno diante de voi”. Fiz o caminho e ao começar a descer a escada em caracol, tive a impressão que ela terminava uns cinco metros abaixo do nível do salão e da rua. Ao fim dela, um outro salão, menor, iluminado apenas por uma janela, bem no alto, e logo à frente outra escada, larga, de pedra, e com não mais que cinco ou seis degraus longos. Na minha frente havia quatro aberturas em arco, baixas e estreitas, três delas completamente escuras. Na outra, se via uma luz tênue e uma porta, banheiro masculino e feminino. Dali em diante escuridão. Eu disse um “alô” que se prolongou – “alô, lô, lô, lô...”. Bastou para fantasiar prováveis passagens secretas, subterrâneas, que permitiam a fuga de conspiradores ou facilitavam encontros clandestinos.

 

Saí do banheiro e veio a tentação. Ao invés de pegar a esquerda e voltar para cima, fiz o caminho inverso. Esperei os olhos se acostumarem à penumbra e logo nos primeiros passos esbarrei em pedaços de madeira. Peguei o que parecia uma ripa de caixote e continuei, pé ante pé, roçando o chão. Meu medo era encontrar ratos, me embaraçar em teias de aranha. Lembrei do celular no bolso, a iluminação era fraca e se apagava rapidamente. O teto baixo quase tocava minha cabeça e a largura do túnel não permitia abrir os braços. No que pude distinguir, as paredes eram uma mistura de tijolos vermelhos, cor de terra, com pedras grandes e irregulares. Evitava tocar nelas. Mas fui seguindo no liga e desliga do celular e aos poucos notei que o caminho fazia uma curva, o que me fez olhar para trás e ver que a luz da entrada ia ficando pequena.

 

Voltar ou continuar?

 

O cheiro de lugar úmido aumentando, o silêncio abafado também. Meu pedaço de pau, como guia, raspava a parede que se encurvava cada vez mais fechada. Parei em silêncio, celular apagado e nenhum som, a não ser minha respiração que aumentara de ritmo. Olhei para traz e não via mais a entrada, coração deu salto, melhor voltar. A curva não podia ser tão longa, andei mais um pouco, ela foi diminuindo e senti alívio quando vi luz no fim do túnel. Apressei o passo, quase tropecei, ofegante, o arco aparecendo e quando saí, decepção: as escadas por onde eu havia descido. O túnel era uma ferradura e a não ser que eu não tenha percebido, não vi ou senti nenhuma outra saída.

 

Mas onde iam dar as outras duas bocas que ficavam entre uma extremidade e outra do túnel que eu acabara de percorrer? Não quis correr o risco de bancar o bobo de novo.

 

Nos fundos do salão, atrás da minha mesa, jazia o garçom imóvel apoiado num balcão. Olhava para mim com meio sorriso, irônico. Sentei no meu lugar, de costas para ele, que imediatamente veio me servir a sobremesa sem dizer nada. Ninguém entrou no ristorante aquele tempo todo, almocei sozinho. A matrona permanecia impassível na mesa diante da saída, a contemplar a rua, cigarro na mão. Em nenhum momento voltou-se para mim desde que eu retornara da expedição.

 

O garçom veio recolher prato, taça e garrafa.

 

- Uno espresso?

- Si, e il conto, per favore.

 

Paguei, o garçom puxou-me a cadeira e olhando nos meus olhos, gentil, “L´altro, nisuno sabe niente donde voi. Il camino se bifurcam, bifurcam, bifurcam... Buona sera, signore, grazie mille”.

 

Saí pelo vícolo e os caminhos iam se bifurcando no labirinto de becos e vielas semi-escuras, semi-desertas. A vontade de me perder só aumentara. Cose di Roma.

 

 

 


Luiz Henrique Gurgel - É paulista de Santo André, professor que se debandou para o jornalismo há mais de 20 anos. Trabalhou com projetos editoriais do Estúdio Elifas Andreato, em São Paulo, onde fez parte da equipe de criação e foi um dos editores da revista Almanaque Brasil, extinta publicação de bordo da TAM Linhas Aéreas; ainda com Elifas foi pesquisador e redator da série em fascículos “História do Samba”, lançada pela editora Globo. Também participou da equipe de programação da Galeria Olido, centro cultural da Prefeitura de S. Paulo, logo após sua inauguração em 2004, responsável pelas atividades com literatura. Como free-lancer, teve reportagens publicadas por Caros Amigos, Revista Brasileiros, Diário do Grande ABC entre outros. Atualmente trabalha com projetos educacionais e concluiu uma pesquisa de mestrado sobre Carlos Drummond de Andrade na USP. Como free-lancer, teve reportagens publicadas por Caros Amigos, Revista Brasileiros, Diário do Grande ABC entre outros.