por Adriane Garcia__
No caminho, o que este pequeno grande livro faz é colocar a nossa concretude (como persona) em xeque, “nossa passagem efêmera” diz o poeta, é passagem como forma. Conter e estar contido no Universo parece irremediável: “Saber a nossa/ insignificância/ é meio caminho andado”. Com profundidade reflexiva, Meio consegue ser um livro sério e solar. As referências culturais celebram as construções para dar significado à existência humana - para o bem e para o mal; os animais colorem com sua presença de alumbramento, como no poema “Siriema e gatos”. Nos gestos simples, como esticar um lençol, o poeta nos mostra nossas tentativas de ordenação do mundo, sem a qual entramos em colapso: a fantasia dá sentido à vida.
Rômulo Garcias faz uso certeiro das palavras e das figuras de linguagem; aqui, as anáforas “vale quanto pesa”, “tudo quanto pesa”, “nada se represa” repercutem o sentido geral de Meio: uma ontologia. É da poesia frequentar o Mistério, os lugares primordiais que, perdidos seus nomes, preenchemos com nosso vocabulário de devir. É passado, presente e futuro que, na verdade, são meras convenções humanas. O tempo e o espaço relativizados a tal ponto que o poeta declara de onde está: “Ouço o roncar/ do vulcão em La Palma”. Imagens belíssimas compõem Meio: “Breu de cortar com faca”.
Criativos e sonoros, os versos se aproveitam não só de rimas ocasionais e muito bem colocadas, quanto de aliterações e assonâncias que tornam o poema musical: “Um galo canta/ Para a lavra rubra/ Parente do sol”. Fluido como a água que descreve, tema e forma se juntam neste livro de Rômulo Garcias: “Sou o risco/ A bússola e o arpão/ O tempo e meio// Na cacimba/ água de batismo// No alforje o ferro/os fragmentos do quadrilátero”.
Em Meio, o humano está posicionado na paisagem como parte do todo, se há consciência disso, essa consciência é a do poeta. Há um não saber no andarilho, um não saber no para onde se segue e por qual motivo, tudo sendo movimento e assim, tudo sendo inércia. O nosso conhecimento se situa entre paradoxos. Meio retrata a solidão como marca de nascença, ser um e ser uno nos seus antagonismos e complementaridades. O ser humano é colocado na paisagem como o portador da ilusão, o que possui é “ouro de tolo”. Muito daquilo que construímos a respeito de nós é erguido sobre esse ouro, mas a identidade aparente é traída durante o sono, enquanto sonhamos: “Quando é noite/ As feras escapam / do zoológico de nome consciência”.
“O eu é uma armadilha
Ninguém é uma ilha
Sabem Ulisses e Ariadne
Penélope e Teseu
Cada um
se agarra
ao que não tem!”
A crítica política e social comparece em Meio e flagra o momento político do Brasil sobre o governo de extrema-direita, eleito por 57 milhões de brasileiros. No poema Gado, o poeta declara: “Eu assisto à besta fera/ ir ao curral pela manhã”. É assim que Meio traça com vários poemas, mas também podendo ser lido como um poema único, o caminho individual ao coletivo, trazendo uma poesia que vem de olhos atentos para a observação do mundo – do universo observável – e de um pensamento que busca a profundidade naquilo que vê. Após o fim, tudo se principia, pois não há começo ou fim. Esse meio (eterno) é uma posição de ambiguidade daquilo que na verdade sempre estará entre – não possuindo pontas, já que, na verdade, somos seres que precisam de posicionamento para nos encontrarmos no mundo. Somente a linguagem pode nos estabelecer no Mistério: “corroê-lo/ à síntese/ dissolvê-lo/ ao estado larval/ para que tudo/ se principie”. É então que o poeta nos revela que já estamos mortos, sem que isso nos impeça de eternidade:
“Poesia é
psicografia
das almas deste mundo”
Livro pra ler, reler e reler.
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Meio
Rômulo Garcias
Poesia
ed. Mosaico
2022
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020 e Estive no fim do mundo e lembrei de você (Editora Peirópolis).