Deixando os fatos de lado, guardo todo o resto | Pedro de Hollanda

por Taciana Oliveira___





Desde que vim morar no hotel da rua do ouvidor da minha alma, que abro a janela esquecida, pendurada no tempo da existência ou no desfazer do tempo, como se a matéria não imprimisse verdades. Tudo que não me significa parece estar à minha frente, neste pedaço de quase muro, na distância-vertigem entre este quarto e os que sempre margeiam o bairro, a cidade, o continente. A paisagem tombando se apega à membrana dos meus olhos, no movimento indisfarçável contra o balé que me habita o corpo-alma ou este não sei o quê que me descontinua. Qualquer nostalgia que me supõe, é como uma isca frágil sem banquetes, sem orgasmos. A janela não-objeto escapa um recorte do ar finíssimo e um ruído que dilui qualquer sonho fabricado numa página da revista da infância, suspensa no calendário do tédio. Os ventos trepidam na vizinha do oitavo andar e formigam o corpo quando reconhece a nudez como deserto e mar e deserto.



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De fato, de uma hora pra outra, sequestraram todas as nossas invenções de mundo melhor. Não é só o fato. Todas as barbaridades já estavam expostas na praça dos poderes dos minúsculos personagens sem empatia. Talvez não houvesse linha ascendente nas pipas que voavam ignoradas, e hoje, desesperançam os olhos aflitos de quem brincava na laje sem (des)presidentes ou (des)governadores sociopatas a bordo de um helicóptero-fetiche. Talvez não houvesse Darwin e a Evolução, talvez a história seja tão aleatória quanto as centelhas de consciência esparramadas na multidão desatenta ou desamparada ou (des)existente.

          



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Deixando os fatos de lado, guardo todo o resto. Se eu deito, sinto um tijolo apoiado em meu peito, acomodado entre o pulmão e o músculo cardíaco. Cuido todas as noites para que ele não escorregue, salte ou se aprofunde tanto, a ponto de se tornar inacessível. Manuseio o barro deste tijolo, tentando reconhecer as angústias e as liberdades como matérias-primas ainda úmidas. Não sei se por conta disso, todas as manhãs des-acordo encharcado sobre uma poça de sangue-lágrima quente vermelho sem que o sangue esteja ali como fato. Faço um esforço descomunal pra me despedir do que eu suponho ter atravessado, através dos espelhos e do que aceitamos como farsas sociais ao longo da vida. Queria levar o lixo até à escada quando pedi que Chopin voltasse à sala. Coço entre os dedos, enxugo o excesso de lágrimas e sorrio sem nenhuma esperança nestes artifícios de vida ou de país. Leio cheio das ignorâncias “noturno em mi-bemol maior”. Gosto de acreditar que as teclas pretas do piano rompem a monotonia do cotidiano repleto e exausto de nós mesmos.


 



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Pedro de Hollanda - Arquiteto, designer, escritor, poeta, dramaturgo e artista visual.








Taciana Oliveira – Editora das revistas Laudelinas e Mirada e do Selo Editorial Mirada. Cineasta e comunicóloga.  Na vitrolinha não cansa de ouvir os versos de Patti Smith: I'm dancing barefoot heading for a spin. Some strange music draws me in…