Escritas Pretas | Mi Madre, um dedo em apontado para nossas faces

 por Ângelo Fábio___

 


Memórias desde a primeira vez que vi a Mi Madre até 2022


MI MADRE, UM DEDO EM RISTE APONTADO PARA AS NOSSAS FACES

 

E ela falava sobre as representações das rosas, elas muitas vezes representavam a violência escondida como todo pedido de desculpa de um homem agressivo e inseguro que violentam as mulheres. Trata-se de uma simbologia cruel onde o indulto é banhado por pétalas de rosas cheias de malquerer...

 

-          Sou Jhanaína Gomes, neta de Benedita Ângela e José Gomes por parte de pai.  Neta de Maria Gonçalves e Amaro da Silva por parte de mãe. Filha de Josué Gomes e de Maria da Conceição, irmã de Giselle Gomes. Sou artista, professora, mãe solo de Lótus. Minha avó fugiu de Caetés e veio para a periferia do Recife. Não temos água encanada nem saneamento básico. (fotos por parte paterna e materna)

 

Não é fácil ouvir tantas dores porque de dores já estamos submersos. As amarguras nos abrem feridas que infelizmente crescemos ouvindo tristes inverdades, e uma das tantas é de que homem não chora. Mí Madre não fala apenas da dor e da solidão de uma única mulher. O que presenciamos na cena é o falar de muitas mulheres em um canto só. Trocando em miúdos e tocando nas feridas expostas, este monólogo nos diz o quanto crescemos numa sociedade machista e patriarcal. Mi Madre nos impossibilita tirar o corpo fora e adentrar em lugares internos que muitas vezes evitamos nos situar e refletir sobre o que fazemos ao corroer o outro/a e em si, toca em lugares delicados das mais diversas subjetividades. 

 

Existem muitas outras camadas nesta obra que nos possibilita um longo debate, e só para citar uma solidão e a violência vivida ao/do homem negro. Mas este espaço aqui será dedicado unicamente para relatar um pouco do que é esta obra protagonizada pela bailarina, atriz, performer e mestra em educação Jhanaína Gomes.

 

Uma obra autobiográfica que relata a história de cinco (5) mulheres em um corpo solo, do terreiro de uma mulher afroindigena. O teatro também é um terreiro de processos entre incorporações e excorporações. 

 

Maria da Conceição criou suas filhas, mas para poder sustentar a família, ela tinha de deixar suas crias com a vizinha que não gostava delas. Então desde cedo o racismo já batia na porta como todos os dedos em riste apontados em nossas faces. Quando criança ouvíamos o dito de que “minha avó foi pega no laço”. Tal frase se refere à forma pela qual mulheres indígenas foram capturadas, torturadas, laçadas, amarradas e “amansadas” por colonizadores. (“MINHA AVÓ FOI PEGA NO LAÇO”: A QUESTÃO DA MULHER INDÍGENA A PARTIR DE UM OLHAR FEMINISTA. - Art. Mirna P.Marinho da Silva Anaquiri). Corpos femininos durante décadas foram carregados e marcados pelas mais diversas violações. Se pensarmos bem somos filhos e filhas de um estupro social e não de um pseudo processo pacífico figurativista.

 

Em cena relatos e situações que se confundem com a vida real, ou quiçá a própria vida, é o típico retrato de muitos depoimentos de tantas outras mulheres. Em determinado momento o homem parece ser o vilão da história, se trata de um trabalho que fala sobre elas e não deles e é isso o que saberemos mais à frente.

 

No teatro somos “livres” para contar coisas. O/a adulto/a tem o péssimo costume de dizer que criança mente. Não, elas não mentem, elas falam verdades sobre o adulto… Elas contam aquilo que veem e sentem.



Sobre Mi Madre

 


Entramos numa sala, no centro do palco uma mulher afroindigena com seus cabelos presos, sentada numa cadeira, ao seu lado uma mesa que até pouco tempo atrás era chamado de "criado mudo" (termo racista que faz referência aos criados, geralmente pessoas escravizadas, que deveriam segurar objetos para seus senhores/as e que eram proibidos de falar),  nele se sustenta um vaso com rosas vermelhas, que segundo a artista se presentifica para homenagear sua avó materna que cuidava de roseiras em sua casa. Vemos uma caixa de madeira, que além de guardar grampos de cabelo, nela se res-guarda segredos, um bastidor de madeira com tecido e um pente. 

 

Mi Madre é um espetáculo atemporal que se enquadra em qualquer tempo, lugar e espaço. Uma montagem simples com uma atuação e coreografia de força precisa onde a mimese está presente durante todo o tempo da obra. Sua dramaturgia autobiográfica arriscada e de muita exposição fala sobre uma mulher e tantas outras mulheres que vieram antes de nós e de tantas outras que estão entre nós. Com uma iluminação precisa, figurino impecável, recursos cenográficos simples e realistas, uma trilha sonora que nos desloca a outras memórias afetivas e que nos fazem voltar a outros tempos entre sutilezas e nuances mesmo que não tenhamos vivido determinada época.

 

Em uma das cenas a atriz relata sobre um dia de domingo na casa de sua avó materna. Esse dia marcou sua trajetória. Ela diz que enquanto dormia no quarto do seu tio quando criança, acordou repentinamente com sua por cima de seu corpo tapando seus ouvidos. Ela, a mãe, não queria que a filha (Jhanaina) escutasse os barulhos que vinham da sala. Mas a mãe esqueceu a porta do quarto entreaberta e foi inevitável ver o que precisava ser visto. Sua avó agarrada nos pés de seu avô enquanto ele quebrava tudo dentro de casa antes de ir embora. Sua avó estava atirada ao chão implorando para que o "seu homem" não fosse embora. 


 

Jhanaína em nenhum momento se declina e cada vez mais se torna grande, ela ou a personagem nos causa um frio na barriga e mente tudo é milimetricamente pensado, as palavras que saem de seu corpo também são pensadas, ditas e sentidas por quem fala e pra quem ouve. Presenciamos algo que nos coloca dentre compromissos e realidades as quais muitas vezes optamos por não encarar. O mais intrigante é que presenciamos um discurso articulado de ideias e imagens e jogo de linguagens sociais que é cabível em qualquer vida, sobretudo na do povo negto.

 

Faço um parêntese com os espetáculos Stabat Mater direção e dramaturgia de Janaína Leite e Mata Teu Pai com atuação de Debora Lamm, direção Inez Viana e dramaturgia de Grace Passô. Em Stabat Mater presenciamos realismo e ficção, sonhos e memórias, narrativa de uma peça que questiona as “verdades” e regras do status quo. Presenciamos ali uma mulher na cena que nos expõem seus desejos e outras subjetividades de um pos-porn teatral da vida real. Em Mata Teu Pai logo na primeira cena ouvimos a performer dizer enfaticamente: “Preciso que me escutem!”, logo ela diz “Eu não falo muito, é essa febre”, o espetáculo a cada instante vai ganhando formas até o palco ser tomado por um coro de senhoras criando uma atmosfera mística, quiçá estas senhoras sejam as Yabás. Em Mi Madre há um único presente “corpo desnudo” expondo sua e nossas feridas. Estas três mulheres em cena falam de seus universos íntimos e de tantas outras mulheres, elas tecem um lugar que não querem e não devem ter, ter de aguentar e ter de ser forte o tempo todo. Cada uma dessas mulheres abordam um teatro contundente que nos traz as mais diversas reflexões e elas sangram.

 

Seria um privilégio tê-las num mesmo lugar, num mesmo encontro/festival com os mais distintos públicos. Outra curiosidade é que nestes três (3) espetáculos temos algo em comum, dedos em riste apontados para as nossas faces, cada uma vai tecendo suas feridas e sanando suas almas. O mais curioso é que talvez para Jhanaína Gomes e Grace Passô sejam as únicas a compreenderem as dores das mulheres negras e indígenas, pois trata-se de uma constante febre. São febres que demoram a sanar estes povos que desde sempre sofrem pelo processo de genocidio e apagamento neste Brasil.

 

Num momento catártico em Mi Madre ao som da canção “I love to love” de Tina Charles, Jhanaína Gomes dá início a uma dança, não demorou muito pra uma senhora ir ao centro do palco. Víamos ali o encontro de suas histórias, e elas transbordavam alegrias, lágrimas de desabafo, sorrisos, afetos, sentimentos e paixões, e nós ali assistia-mos atônitos/as com uma imensa vontade de bailar entre elas, caímos em lágrimas.  Mi Madre não se trata de um relato carregado só de dores, mas sim de processos ancestrais, educativos e de esperança.


Jhanaina não mede esforços para falar o que sente

 

1 - Como foi o desfecho de Mi Madre?

Quando estava encerrando Mi Madre, passei um tempão para me recuperar daquela temporada. Por mim eu estava sempre com Mi Madre…
mas não tenho couraça emocional suficiente. Estou criando ovário, útero, intestino, vísceras para segurar a onda e estar com Mi Madre sempre e acima de tudo, estar e ficar bem com ela.


 

2 - Você fala dessas vozes ancestrais de corpos femininos que carregam dores. E sua ancestralidade para onde vai após tantos partos? *

 

Minha ancestralidade vai para onde eu vou. Eu sou a continuidade delas, eu sou o sonho delas e é justamente isso que me dá forças para continuar jornada olhando para trás, honrando, mas caminhando de uma maneira diferente. Sei que minha cura e o que faço aqui reverbera nelas e no campo.

 

3 - São falas poéticas, políticas, polidas e dores que representam outras vozes. Durante um momento você foi tida como louca na cena de Recife. Que loucura era esta que tanto falavam? Você ainda segue sendo o que a inquisição contemporânea lhe dizia?

 

Acho que essa pergunta não deveria ser feita a mim, mas a cidade do Recife. Aos inquisidores “contemporâneos” como você bem fala. Eles talvez deem a resposta que você procura, no entanto tenho as minhas suspeitas do que seja essa ação de apontar os dedos para mim como a louca. Suponho que seja o fato de não me calar diante de alguns absurdos e injustiças que já presenciei e que não só aconteceram comigo, mas com grupos que participei e pessoas próximas. Eu tomo partido e se você machuca quem eu amo me machucou também. Depois entendi que a vida não é assim e que eu preciso me concentrar em mim e para além disso, me concentrar no que posso fazer com o que fizeram comigo e não com o outro. Acredito que hoje compreendo a inquisição, porque tenho consciência das vezes que a fúria tomou o lugar do amor e do afeto nas relações que estabeleci. De certa forma compreendo os inquisidores e sigo na verdade abraçando ainda mais a minha LOUCA, só que não a coloco mais em risco. Ela está protegida por mim. Sigo protegendo-a, sigo evitando me relacionar com o que já não me cabe mais.


4 - Nos fale do repertório musical que certamente a geração “z” não teve acesso.

 

Mi Madre é de Nubia Lafayette, é de Alcione, é de Reginaldo Rossi e por aí vai. Mi Madre é do rádio, do vinil, da vitrola que tocava as músicas para minha mãe dançar na sala de casa enquanto faxinava, cozinhava e cuidava de mim e de minha irmã. Mi Madre é minha mãe dançando enquanto a minha criança olhava fascinada aquela força e alegria em forma de mulher! Mi Madre é minha mãe dançando enquanto a minha criança olhava fascinada aquela força e alegria em forma de mulher!


 

 

5 - Um homem preto que também tem muitas dores lhe faz perguntas sobre as dores. Por outro lado, há um apagamento da dor do homem preto. E…?

 

 Há um apagamento geral de nossas dores enquanto indivíduos pretes. Mas acredito que nossas dores enquanto gênero são diferentes.

 

 

6 - Nos fale de sua equipe e sobre as iniciativas sociais que este projeto vem realizando durante os últimos anos.

 

Minha equipe é uma euquipe. No entanto, não posso esquecer de pessoas cruciais que foram imprescindíveis para que Mi Madre estivesse no mundo. Arnaldo Rodrigues e Dado Sodi são de fato os dois grandes homens que sustentaram esse pilar. Também preciso falar da própria dona Ceça, minha mãe, que foi produtora sim muitas vezes nesse processo. Preciso falar de Aline Lohou que me presenteou com o figurino. Eu gostaria de ter participado, lançado e realizado mais iniciativas sociais de Mi Madre, mas ainda não foi possível. Mexe muito com o meu emocional e como estou na produção e em cada detalhe do que acontece para colocá-la em movimento, fazer isso requer de fato uma equipe de produção e de suporte que não tenho ainda.

 

7 - Fale o que quiser, esse espaço é todo seu.

 

 Eu quero agradecer o convite e a honra de ter participado dessa entrevista com você Ângelo, que para mim, é uma referência de luta política, artística e cultural na cidade e fora dela. Que você colha sempre bons frutos porque a sua semeadura é boa! Muito obrigada!

 

 

 


Ficha Técnica

 

Produção executiva: Jhanaina Gomes, Arnaldo

Rodrigues e Maria da Conceição

Direção, concepção, dramaturgia, cenografia,

coreografia: Jhanaina Gomes

Intérprete: Jhanaina Gomes

Comunicação visual: Júnior Melo

Fotos: Morgana Narjara

Figurino: Aline Lohou

Iluminação: Dado Sodi

 

 

Jhanaina Gomes  é neta de Benedita Angela da Silva e Maria Gonçalves. Filha de Maria da Conceição e Josué Gomes e mãe de Lótus. Como também é atriz, bailarina, produtora, terapeuta ayurveda e em formação como educadora somática (BMM - Body mind Movement). Mestra em Artes Cênicas pela UFRN e formada em Artes Cênicas pela UFPE. Especialista em dança educacional pela CENSUPEG. Faz parte do grupo de pesquisa em ritos e cartografias feministas - MOTIM (Cnpq - UFRN/UERJ), como também da rede de mulheres negras afrocentradas de Pernambuco. Dedica-se a investigar diariamente como as experiências de vida podem interferir, colaborar e dar sentido aos processos criativos e curativos das pessoas.

 

 

 



Ângelo Fábio - artista interdisciplinar, atua com o cruzamento das linguagens cênicas, audiovisual e artes visuais. Vive em trânsito entre SP e PE. Fundador do Pós-Traumático Coletivo, Casa Pós, Hemisférios Itinerantes Cooperativa de Comunicação Cultura e Trabalho (AR/BR 2028/2010) e Caosmo Cia. Experimental 2002/2004. Estudou jornalismo de investigação na Universidade Popular Madres de la Plaza de Mayo e Licenciatura em Direção Cênica na Universidad Nacional de Artes - UNA (Argentina) entre os anos de 2008 e 2012. Idealizador e curador da Mostra Periférica; Cineclube Universo Paralelo; Produtor, roteirista e assistente de direção do doc Dona Dóra. A mística do boi (2021) disponível na plataforma Itaú Cultural Play. Atuou e produziu o monólogo Coelho Branco. Coelho Vermelho de Nassim Solemanpour; Coord. do Ciclo de Ações Heutagógicas; Encontro das Artes Cênicas de Camaragibe (2017/2020); idealizador e produtor do livro Bianor – Trajetórias e Memórias (2018). Com experiência no campo da gestão pública em cultura, dirigiu o Cine Teatro Bianor Mendonça Monteiro, equipamento da Fundação de Cultura de Camaragibe (2017/2018) e ex-diretor adjunto da Diretoria de Cultura de Lago Posadas, Argentina (2012/2013).