por Adriane Garcia__
No momento em que está narrando a história, Eva é uma brasileira,
mulher de meia idade, professora de Português em um país estrangeiro, morando
em um apartamento pequeno, situado acima de uma floricultura. Uma mulher,
segundo ela mesma, que “Tinha tudo para dar errado e dava”. É esse
percurso, o de uma certa matemática dos afetos, que a leitura de Eva,
romance de Nara Vidal, oferece.
Nascida de uma família tradicional, mas disfuncional, Eva tem o
conflito a respeito de sua futura identidade (forjada pelos pais) já iniciado
no útero materno. O pai quer um nome fácil para a alfabetização. A mãe tem
pavor do nome da primeira pecadora do mundo. Os motivos de pai e mãe são
suspeitos, tanto um para gostar, quanto outro para abominar. Neste livro de Nara
Vidal as insinuações subliminares estão presentes o tempo todo – estamos
falando de um relato em que a sanidade e a insanidade mentais povoam o centro
da narrativa, em que os transtornos psíquicos abundam. Se em Eva fica
evidente uma mulher transtornada, não é menos verdadeiro que a “normalidade”
está muito doente. A personagem expõe seu passado marcado pela violência – de
todos os tipos – a que os adultos comumente submetem as crianças.
A narradora se encontra tomada de melancolia, com episódios
alucinatórios, caminhando para o delírio e o surto psicótico. É sabendo disso
que é possível compreender a linguagem utilizada por Nara Vidal em Eva.
Irregular, o começo do livro (mais ou menos um quarto das páginas) é narrado de
forma a entrar em digressões muito rapidamente, saltando de uma lembrança a
outra, um episódio a outro, fragmentário, com frases curtas que não permitem um
tempo narrativo de imersão para a leitora/o leitor, como se a personagem nos
contasse uma história mais preocupada em lembrar do que em se fazer entender,
mais preocupada com o próprio eu (obviamente, já que a libido está investida em
si a esta altura – a mãe introjetada – e não mais no mundo) do que com o
emissário da mensagem. Depois, aos poucos, quando a narrativa se foca no
presente de Eva – ela, a floricultura, a mulher das flores – esse
tempo/ritmo nos permite acompanhá-la melhor, as frases e os parágrafos se
arredondam, pois ela própria começa a se centrar no que se tornará uma
obsessão. Os fatos ganham um espaço maior de linearidade. Podemos dizer que a
linguagem que Nara Vidal desenvolve em Eva acompanha o estado
psíquico precário da narradora.
O tule marrom se erige como símbolo da depressão agravada (melancolia) e
também como signo linguístico. Na companhia das mulheres banguelas e carecas,
fato também alucinatório e simbólico, a protagonista nos dá conta de sua
degradação, sem deixar de apontar com clareza os fundamentos de sua ruína: ter
sido nominada Eva, como quem recebesse uma maldição no nascimento; ser
filha de uma mãe castradora e um pai negligente, ter sido exposta à violência
doméstica de forma direta e indireta, viver em uma comunidade religiosa e
supersticiosa, de cultura moralista, que não consegue negociar bem com os
desejos nem oferecer vias de sublimação, só podendo, portanto, efetuar-se na
falsidade, como moral hipócrita, da qual Eva ri, gargalha. É
interessante notar que, ao dar clareza de causa e consequência para sua
personagem, Nara Vidal também está dizendo que não basta saber de um
trauma intelectivamente, se não há gesto reparador que alcance o momento em que
se ficou fixado.
Em Eva, como na vida, a repressão pode ter um efeito catalisador
do desejo, deslocando-o para vias perigosas. Ao contrário de muitas crianças
reprimidas que vão reagir na “clivagem”, oferecendo ao mundo um “falso self” e
escondendo sua verdadeira essência, a personagem Eva dará vazão ao
desejo sexual (o recalcado da mãe em ser Eva?), assumirá a identidade
que lhe forjaram de uma mulher pecadora, com o diabo no corpo, mas não em
direção ao gozo de seu próprio prazer e sim em direção a afrontar sua mãe.
Figura emblemática, primeira morada e primeiro amor, a mãe é também um objeto
de nosso ódio e ressentimento. Eva, presa para sempre nesse primeiro e
único amor, chegará ao ponto de desprezar a própria maternidade para evitar no
filho a dor que ela própria sente na perda da mãe. Fazer perder desde sempre
para não perder depois. Viver perdendo para não perder nunca. Desconhecer o
amor para continuar amando. Morrer com o objeto amado. Não ser mãe para nunca
deixar de ser filha. Escravizada por esse amor, o desejo de Eva fica
atrelado ao desejo da mãe. A perpetuação da violência – uma espécie de
filicídio – se faz no corpo de Eva.
Nara Vidal trabalha com temas importantes e
atuais, presentes em todos os seus livros: loucura e sanidade, mulher e
violência, religião e hipocrisia, moralidade e poder. Eva discute
também, com profundidade e coragem, a existência da maternidade sem maternagem
e mães tóxicas. Desta vez, a autora nos traz essa personagem incômoda, na
proximidade quase insuportável da primeira pessoa, uma mulher não palatável,
nada simpática na sua crua exposição de si, difícil, feita de abandono e
facilmente abandonável. Alguém que não escolheríamos por companhia, que só vê
no seu entorno um mal-estar. Uma personagem tão real, constantemente em busca
das repetições/situações que poderiam reencenar o trauma para, quem sabe um
dia, encontrar – numa dessas reencenações – a aprovação impossível de sua mãe.
Toda criança que chega espera ser bem recebida. Eva, de Nara Vidal,
nos coloca diante de becos assombrados por famílias, becos muitas vezes
escuros, assustadores e sem saída.
“A mãe tinha mania de ímã. Esse era
um par de sapatos holandeses, os tamancos. Eram vermelhos e seguravam o meu
bilhete e a nota dela na geladeira Consul.
“Atrás, traz, trás. Qual é sua
dificuldade, minha filha? Não se esqueça das vírgulas. A falta delas pode lhe
trazer problemas irreversíveis. Dessa vez, vá lá. Mas atenção, muita
atenção.”
“Querida mamãe, na parte de traz do
armário do canto direito deixei uma surpresa mãe. Te amo.”
Eu tinha nove anos e muita fé que
aquela mãe poderia ser a melhor do mundo. Era um coração de papel com uma
declaração de amor, tudo de uma singeleza sem tamanho. Mas trás e a vírgula
eram o que valia. Pregado em cima do meu bilhete de amor, uma repreensão.
Olhando para a caixa de cartas, me espanto com essa insistência minha em
trazê-la comigo. Desejo a ela, agora, a morte. Sua autoridade ainda me norteia”.
***
Eva
Nara Vidal
Romance
Todavia
2022
Nara Vidal nasceu na cidade mineira de Guarani e é formada em letras pela UFRJ, com mestrado em artes e herança cultural pela London Met University. É autora do romance SORTE (editora Moinhos, 3º lugar do prêmio Oceanos) e do livro de contos MAPAS PARA DESAPARECER (Faria e Silva), entre outros.
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020 e Estive no Fim do Mundo e lembrei de você, (Editora Peirópolis, 2022)