Meio boazinhas, meio bobinhas | Yvonne Miller

por Yvonne Miller__




Chico, apesar de ser um cachorro da raça mais inteligente do mundo, ainda não aprendeu a brincadeira do graveto. Dois anos e meio treinando, e mesmo assim ainda não entendeu que precisa entregar o graveto primeiro para que a gente possa jogá-lo de novo. De resto, faz tudo direitinho: corre atrás, pega e traz, mas depois não solta. Com a madeira entre os dentes, fica enfiando o focinho nas nossas mãos como dizendo “pega!”. E aí a gente pega e nada dele largar o negócio. Fica puxando, puxando até a gente perder a paciência e soltar. “Fica com ele então, ora mais!”. Mas também não quer ficar com o graveto de graça. Lá vem de novo pra cutucar nossas mãos com o focinho.


Às vezes ele deve achar que está deixando muito difícil pra nós humanas. Então coloca o graveto no chão, pertinho da gente. Andando em ré, se afasta um pouco, sem perder seu tesouro de vista. Olha pro graveto, olha pra gente, mais um passo pra trás. Olha pra gente de novo: “Tá vendo como estou deixando fácil procê? Pega, vai, tenta!”. Mas é só a gente mexer um dedo que ele dá um pulo e o pega de volta. Logo empina o focinho no ar, triunfante. O único jeito de conseguir que ele largue o graveto é jogando outro. Só assim ele perde o interesse pelo primeiro e corre atrás do segundo, pega e traz.


Mas outro dia o observei conversando com o gato: “Nossas tutoras são até boazinhas, mas meio bobinhas, não acha?”, estava dizendo Chico. “Dois anos e meio treinando e tu acredita que até hoje não aprenderam a brincadeira do graveto?”




 

Yvonne Miller nasceu na cidade de Berlim em 1985, mas mora, namora e se demora no Nordeste do Brasil desde 2017. Escreve contos, crônicas e literatura infantil em alemão, espanhol e português. Tem textos publicados em coletâneas, como Paginário (Aliás Editora, 2018), A Banalidade do Mal (Mirada, 2020), Histórias de uma quarentena (Holodeck Editora, 2021). É cronista do coletivo sócio-literário @bora_cronicar, do blog Escritor Brasileiro e assina a coluna “Isso dá uma crônica” do ColetiveArts. Além de ficcionista é autora e redatora de livros escolares. É uma das organizadoras da coletânea de contos cearenses “Quando a maré encher” (Selo Mirada, 2021). Instagram: @yvonnemiller_escritora