O amor que há entre Deus e o Diabo | Rafael Silva

 por Rafael Silva__


Tela de Hieronymus Bosch



Por trás do trono de Deus há uma porta que leva diretamente para o trono do Diabo. Se você se esgueirar pelos cantinhos, bem miudinho, sem deixar que Deus ou Diabo lhe vejam, você chegará a essa porta e descobrirá o segredo milenar que esconde a guerra do bem contra o mal: Deus e o Diabo vivem um romance homoerótico. Como faces da mesma moeda quem olha Deus de frente não enxerga o Diabo de costa. Suas silhuetas são simetricamente perfeitas. Quando anoitece e seus filhos adormecem, os dois se viram, se olham, se tocam, se beijam, se lambuzam, se penetram e se gozam. É cálido, é forte, é poderoso. Os dois mentem para você porque você só suporta dualidades e guerras e é incapaz de compreender o amor que há entre Deus e o Diabo. Sabe o que aconteceu na Gênese? Lilith descobriu o segredo. Eva descobriu o segredo. Adão descobriu o segredo. Adão descobriu o segredo e quis participar. Deus e o Diabo são monogâmicos! A pena… bom, a pena você já sabe. 


Outro dia, eu peguei Deus e o Diabo trocando juras de amor eterno e perguntavam-se quando iriam parar com o teatrinho cósmico. Deus dizia: “amanhã”. E o Diabo: “hoje”. Deus é medroso. O Diabo é precipitado. Resolviam suas contravenções numa foda infernal e divina. No encontro dos extremos opostos, um encaixe perfeito. Gritavam ao Nada toda sua glória. Gozavam da liberdade fora do olhar da gente. Eras disfarçando amor e onipotência. 


O fato é que, por mais que você não acredite, eu vi com meus próprios olhos e até bati uma. Deus precisa desesperadamente sentir o Diabo fazer o inferno dentro de si, e o Diabo, incapaz de salubridades, adora se desmanchar nas mãos sanguinárias de Deus. Você não entenderia o amor que há entre Deus e o Diabo. Você não entenderia. Quando eu descobri não quis entender. Sabia que essa coisa não caberia na lógica. Os fundamentos da Vida e da Morte, da Guerra e da Paz, do Eu e do Outro… ali… se amando sem conhecerem a rivalidade. Paradoxo dissolvido na saliva quente de suas bocas. Tudo o que eu poderia sentir diante do amor dos dois seria infinitamente maior do que meu corpo poderia suportar. Então, eu escolhi coexistir com a inefabilidade da coisa. 


Lembrei-me do dia em que violaram meu segredo. Na escuridão, único local seguro para meu amor e meu sexo, gente como você despejou em cima de mim e do meu amante seus escárnios, vômitos, forças e armas. Ele morreu. Eu não. Ele morreu. Fomos descobertos e passamos pelo jugo impiedoso da moral humana. Acho que justamente por isso é que eu compreendi e não senti raiva ou indignação ao descobrir o teatrinho de rivais que esses dois executam com tanta destreza desde os primórdios do tempo. 


Eu pergunto então, porque Deus e o Diabo desfazeriam seu segredo milenar? A você que mal compreende a máxima: “Tudo o que vocês ligarem na terra será ligado no céu, e tudo o que vocês desligarem na terra será desligado no céu.”. Mateus, capítulo 18, versículo 18. Você mataria Deus e o Diabo. Assim, como teria matado a mim e ao meu amante. Você liga ódio e separatividade aqui, na Terra, contra mim que pode me ver. Ainda mais o faria nos céus. Trocaria de Deus, inventaria outro, para se vingar deste que não cabe em ti. Você se faz a própria medida de Deus. E sua reza é mentira, é mentira que você foi tocado pelo Amor, é mentira esse seu teatro de cidadão de bem. “Se alguém declarar: “Eu amo a Deus!”, porém odiar a seu irmão, é mentiroso, porquanto quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não enxerga”, 1 João 4, 20. 


Quando a bíblia está debaixo dos braços, sou seu irmão, um passo além dos muros da tua igreja sou o mal que precisa ser expurgado. Diga-me você então, como podemos, eu e meu amante, Deus e o Diabo sair da nossa escuridão e nos mostrar? A você que não realiza a regra de ouro: “Tudo o que vocês desejam que os outros façam a vocês, façam vocês também a eles”. Mateus 7, versículo 12. Você não pensa nisso! Você não dá o que quer receber ou se odeia muito. Responda-me como meu amor pode existir e Deus e o Diabo se saírem do armário se você não teme a advertência: “Não julguem e vocês não serão julgados. Não condenem e não serão condenados. (...) Pois à medida que usarem também será usada para medir vocês”?. Lucas, capítulo 6, versículos 37 e 38.


Você me citará Levíticos e outros textos do velho testamento que te servirão de justificativa santa para me condenar e passar despercebido aos olhos de Deus e me lançar aos braços do Diabo, e no entanto, te digo, que recuso esse Deus que é justiceiro e prefiro ao Diabo que é pedagogo. Você se senta confortável nas premissas antigas e nem que houvesse outro sermão da Montanha você seria capaz de ouvir. Quanto a isso não posso fazer nada se nem Jesus a quem você eleva louvores consegue te convencer. 


De qualquer forma, agora que vi com meus próprios olhos o amor que liga Deus e o Diabo percebo mais claramente como a todo instante operam de mãos dadas. Perceba: como Amar e Sofrer se correspondem; como Guerra e Paz se buscam; como Luz e Escuridão se enamoram; e como há um tesão inexplicável entre Prazer e Pecado. A gente erra tentando acertar, e no gesto bento: exorciza. Na vingança: um desejo, um prazer, uma esperança e um grito. Tudo embolado, dissolvido, misturado e nós nos perdendo na confusão das sensações humanas. Era Deus e o Diabo esse tempo todo consubstanciados a se beijarem e a se amarem. Escute você que busca servir a apenas um senhor: Deus e o Diabo fingem na antessala dos seus olhos, mas fodem no banheiro do teu coração.







Rafael Silva
Sou um jovem psicoterapeuta e escritor: indignado em ambos os papéis. Tenho vivido nesta terra querendo "incendiar cidades" tal como Sonast em "liberdade absoluta", mas como é crime taco fogo pela Palavra. Escritor de "Escritos sobre um velho em ruínas" (Selo Mirada, 2021) e de outros textos debandados por aí mundo afora. O mais é com uma xícara de café ou uma dose de cana. Bora pro bar!