Pitú, tira-gosto e brega | Anthony Almeida

  por Anthony Almeida__




É tarde de sábado nas bodegas da Feira de Caruaru. As caixas de som estão ligadas. Hora duma dose de caninha, uma rodela de caju e “garçom, aqui nessa mesa de bar / você já cansou de escutar / centenas de casos de amor”; três umbus verdes e “eu vou rifar meu coração / vou fazer leilão / por amor, carinho e paz”; uma lapada de Coca-Cola e “eu te amei / me entreguei / do jeito que ninguém jamais se entregou”; um prato de pirão, maxixe, arroz branco e “não, eu não consigo acreditar / no que aconteceu / é um sonho meu / nada se acabou”; uns belos bagos de jaca dura e “no toca-fitas do meu carro (estacionado) / uma canção me faz lembrar você”; duas fatias de abacaxi e “princesa, a deusa da minha poesia / ternura da minha alegria / nos meus olhos quero te ver”; uns pingos de limão espremido e “sei que aí dentro ainda mora um pedacinho de mim / um grande amor não se acaba assim / feito espumas ao vento”; duas patas de caranguejo e “de que vale ter tudo na vida / de que vale a beleza  da flor / se eu não tenho mais teu carinho / se eu não sinto mais teu amor”; um ovo de codorna pra comer e “cadê você? / que nunca mais apareceu aqui?”; um pedaço muciço de galinha à cabidela e “eu não sou cachorro não / pra viver tão humilhado / eu não sou cachorro não / para ser tão desprezado”; uma lasca de goiabada e “nada existe em você / que eu não ame / sou metade sem você / mon amour, meu bem, ma femme”; um taco de charque crua e “eu vou tirar você desse lugar / eu vou levar você pra ficar comigo / e não me interessa / o que os outros vão pensar”; um copo americano de dobradinha e “agora / que faço eu da vida sem você? / você não me ensinou a te esquecer / você só me ensinou a te querer / e te querendo eu vou tentando me encontrar”; um espetinho de gato com farinha quebradinha e “aparências, nada mais / sustentaram nossas vidas / que apesar de mal vividas / têm ainda uma esperança de poder viver”; uma meia-lua de manga espada verde passada no sal e “se você já não me ama / me diz logo agora / eu já não quero surpresas / pra última hora / fale agora”; um saquinho de amendoim cozido e “tudo que a gente transava / eram três, quatro cubas / eu era a raposa / você, as uvas / e eu sempre querendo teu beijo roubar”; uns pedaços de tripa frita e “as contas estão me matando / não me divirto já tem tantos anos / estou com medo do que há por vir / não existe saída pra mim / não existe saída pra mim”; uma fatia de melancia e “diga o que ela significa pra mim / se ela é um morango aqui do Nordeste / saibas, não desisto, sou cabra da peste / apesar de colher as batatas da terra / com essa mulher eu vou até pra guerra”; uma talhada de queijo coalho se derretendo em cima de um bife de carne de sol na brasa e “quem dera ser um peixe / para em teu límpido aquário mergulhar / fazer borbulhas de amor pra te encantar / passar a noite em claro / dentro de ti / um peixe”; um cacho de pitombas e “sorte / eu não queria a juventude assim perdida / eu não queria andar morrendo pela vida / eu não queria amar assim como eu te amei”; uma buchada de bode e “faço de mim o que quero / faço o que quero em mim / faço às vezes uma boa / mas também faço algumas ruim / porque meu bem, ninguém é perfeito e a vida é assim / porque meu bem, ninguém é perfeito e a vida é assim”; uma rodela de pepino e “camas separadas / beijo sem calor / camas separadas / fim do nosso amor”; pé de galinha de capoeira guisada e “ô Kelly, ôôô Kelly / você é pra mim um pedaço de mim / ô Kelly, ôôô Kelly / Deus te proteja / e te conserve sempre assim”; dois gomos de laranja-cravo e “só assim que eu perdoo os teus deslizes / e é assim o nosso jeito de viver / em outros braços tu resolves tuas crises / em outras bocas não consigo te esquecer”; um caldinho de camarão com azeitona e “você é luz / é raio, estrela e luar / manhã de sol / meu iaiá, meu ioiô / você é sim / e nunca meu não / quando tão louca / me beija na boca / me ama no chão”; duas estrelas de carambola e “pare de tomar a pílula / pare de tomar a pílula / pare de tomar a pílula / porque ela não deixa o nosso filho nascer”; umas piabinhas fritas e “o-u-o-u ei-ei / sem você não viverei / todo amor desse mundo / pra você eu entreguei”; umas oito acerolas e “agora aguenta coração / já que inventou essa paixão / eu te falei que eu tinha medo / amar não é nenhum brinquedo / agora aguenta coração / você não tem mais salvação / você apronta / e esquece que você sou eu”; uma porção de sarapatel e “aquela nuvem que passa, lá em cima sou eu / aquela estrela que brilha lá em cima sou eu”; um arrumadinho de feijão de corda com vinagrete e “Sarah, onde é que você se esconde? / Sarah, minhas cartas por que não responde?”; quatro seriguelas geladinhas e “esta é a última canção / que eu faço pra você / já cansei de viver iludido / só pensando em você”; um abraço nos amigos de copo, uma despedida, mais uma dose de cana, de saideira, e a moral de moderar depois.



Caruaru. Setembro, 2022.









Anthony Almeida
é professor e cronista. Nasceu em Caruaru/PE e reside em Presidente Venceslau/SP, onde leciona. Pesquisa a Geografia Literária, escreve e estuda a crônica brasileira. Atualmente é cronista do Jornal Tribuna Livre e da Revista Mirada. É doutorando em Geografia, pela UFPE, editor adjunto da RUBEM – Revista da Crônica, e colecionador de cartões-postais. Contato: anthonypaalmeida@gmail.com