por Ivete Nenflidio__
Pouco importa
Estamos cada dia mais gélidos;
pouco importa, o velho fotógrafo caído,
que congela nas ruas da cidade luz.
Morreu um congolês,
fugiu do país em guerra,
chegou no país Tropicália, da camisa verde e amarela,
país da criança descalça
que toca o vidro do carro.
Pouco importa o homem que fez sua cama
na viela, que gela, que morre torturado.
Pouco importa a desidratação na escola de lata.
Pouco importa os resquícios da ditadura,
o DOI-CODI,
a vala clandestina de Perus.
Pouco importa as “Madres de la Plaza de Mayo”,
pouco importa as mães daqui ou de lá,
dos lagos glaciais,
pradarias dos Pampas, da escadaria.
Pouco importa os homens, crianças
e as mulheres mortas.
Pouco importa, pouco importa...
Cinema mudo
Ficarás emudecido e, se não falas,
terei que interpretar o silêncio,
investigando os trejeitos e o olhar.
Aguardarei, sui generis.
Ficarás quieto, desejando-me,
como o ramalhete de Astromélias
à espera da seda e do laço
Seguirás desejando-me,
como o mar à espera de torrentes flumes
e o solo à espera da mãe-d’água.
Seguirás desejando-me, como sementes
à espera da embriaguez dos céus,
como o campônio à espera da boa safra,
como um pobre garoto à espera da noite de Natal.
E nada mais importará.
Seremos ausência, o mortório que faz apagar,
momentaneamente, as tempestades
das evitáveis tragédias humanas:
o vírus, a fome, toda essa cólera, esse dia.
Não houvesse tantos medos,
resignadamente esperaria.
O breu taciturno findaria e a aurora carminada,
certamente, imperaria, e a sua voz terna,
finalmente, verteria como enxurrada
por todo o meu corpo,
mas não tenho tempo, o radicalismo,
o caos e o ódio imperam.
Sétima arte
A tragicidade do pecado
habita o cerne do mundo
com a dramaticidade
e a potência
da destruição humana.
Os discursos povoados de ira perpetuam,
nada mudou.
Nos relatos dos livros sagrados
ou agora
em pleno século XXI,
seguem provando do próprio
e amargo veneno,
buscando a incansável confissão,
koinonia e perdão.
Motivados pelos líderes e mitos,
seguem armados de palavras de ódio
e um pouco de lirismo
que roubaram
da sétima arte.
Intentam por outros caminhos,
buscam a tecnologia,
frases de efeito,
procuram a remissão
de culpas e pecados.
Seguem tentando vender
suas visões limitadas de mundo,
prometem o Paraíso,
misteriosa epifania.
São faces a moldar-se em disfarces,
com olhos mansos delineados
de uma pureza quase artificial,
com véus nos longos fios
e o esteticismo vazio
nos gloriosos templos lotados,
com gritos de louvores
que alimentam
a Guerra Santa.
Sermões encenados,
fervorosas cenas que mascaram
o preconceito e a intolerância
de um discurso quase teatral.
Ofício da palavra
Enquanto te espero,
crio decretos.
Designando uma nova lei...
Fica obrigatório
uma poesia por dia,
com ou sem regras!
Tanto faz.
Poderá ter tema,
sem título, ser precisa.
Livres
dos cânones
inquisitoriais,
das métricas e rimas.
Poderá,
ser clichê,
anistiado de padrões,
melodramático,
usando palavras abstratas,
neologismos...
Apenas uma regra:
que seja original
e fiel aos liames da
inventividade.
Como escreve o poeta
Aprecio o ímpeto vanguardeiro da poesia,
capaz de produzir tão bela imagem da mortal lágrima que
percorre a íris da leitora apaixonada;
aprecio a utopia lírica que os poetas alimentam em suas
almas,
o teatro de constelações e suas produções,
perpetuadas em verbetes que retratam a vida e a morte,
o amor e o ódio, a guerra e a paz.
A arte de colorir os céus
Fiando a teia da própria existência,
permanecerás na vigília ornamentada,
ansiosamente esperarás as flamas explosivas,
multicores,
observarás, atento da marquise de ladrilhos trincados;
prefere o silêncio,
não quer acordar o cão que repousa.
Observarás a enviesada estrela dourada
de partículas planas e reflexivas.
Plastificada e desnorteada edificação no pico da
árvore
lacônica.
Esperarás...
Arranharás o céu da boca com seu canto, cantarás
enquanto espera.
Usarás o vento para navegar os pensamentos, irá ao
encontro de alguém que partiu.
Velarás o sono manso do cão, torcerá pelo silêncio.
Continuarás esperando a meia-noite, o badalar dos
sinos da capela.
Atento...
Não despertará os monstros que vagueiam por seus
pensamentos,
não lembrará da fome,
da ganância e da guerra,
apenas observará os fogos de artifício.
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Ivete Nenflidio é escritora, poeta, pesquisadora das manifestações populares, curadora artística de festivais e articuladora cultural especializada em Sustentabilidade Aplicada aos Negócios e Leis de Incentivo à Cultura. Como autora, publicou os livros: "Memórias Difusas", "País Estrangeiro - memórias de uma Brasil profundo", “Cartografias da saudade”, “O sereno que habita meus olhos”, “ATAQUE - cale-se agora e para sempre”, além do romance ficcional "Calendas de Março". Está finalizando a obra "Guardadora de memórias", com previsão de lançamento para o segundo semestre de 2022. Informações do site da autora: clica aqui