Seis poemas do livro ATAQUE - cale-se agora e para sempre, de Ivete Nenflidio

 por Ivete Nenflidio__




Pouco importa

 

Estamos cada dia mais gélidos;

pouco importa, o velho fotógrafo caído,

que congela nas ruas da cidade luz.

Morreu um congolês,

fugiu do país em guerra,

chegou no país Tropicália, da camisa verde e amarela,

país da criança descalça

que toca o vidro do carro.

 

Pouco importa o homem que fez sua cama

na viela, que gela, que morre torturado.

 

Pouco importa a desidratação na escola de lata.

Pouco importa os resquícios da ditadura,

o DOI-CODI,

a vala clandestina de Perus.

 

Pouco importa as “Madres de la Plaza de Mayo”,

pouco importa as mães daqui ou de lá,

dos lagos glaciais,

pradarias dos Pampas, da escadaria.

Pouco importa os homens, crianças

e as mulheres mortas.

 

Pouco importa, pouco importa...

 

 

Cinema mudo

 

Ficarás emudecido e, se não falas,

terei que interpretar o silêncio,

investigando os trejeitos e o olhar.

 

Aguardarei, sui generis.

Ficarás quieto, desejando-me,

como o ramalhete de Astromélias

à espera da seda e do laço

 

Seguirás desejando-me,

como o mar à espera de torrentes flumes

e o solo à espera da mãe-d’água.

 

Seguirás desejando-me, como sementes

à espera da embriaguez dos céus,

como o campônio à espera da boa safra,

como um pobre garoto à espera da noite de Natal.

 

E nada mais importará.

Seremos ausência, o mortório que faz apagar,

momentaneamente, as tempestades

das evitáveis tragédias humanas:

o vírus, a fome, toda essa cólera, esse dia.

 

Não houvesse tantos medos,

resignadamente esperaria.

 

O breu taciturno findaria e a aurora carminada,

certamente, imperaria, e a sua voz terna,

finalmente, verteria como enxurrada

por todo o meu corpo,

mas não tenho tempo, o radicalismo,

o caos e o ódio imperam.



Sétima arte

 

A tragicidade do pecado

habita o cerne do mundo

com a dramaticidade

e a potência

da destruição humana.

 

Os discursos povoados de ira perpetuam,

nada mudou.

 

Nos relatos dos livros sagrados

ou agora

em pleno século XXI,

seguem provando do próprio

e amargo veneno,

buscando a incansável confissão,

koinonia e perdão.

 

Motivados pelos líderes e mitos,

seguem armados de palavras de ódio

e um pouco de lirismo

que roubaram

da sétima arte.

 

Intentam por outros caminhos,

buscam a tecnologia,

frases de efeito,

procuram a remissão

de culpas e pecados.

 

Seguem tentando vender

suas visões limitadas de mundo,

prometem o Paraíso,

misteriosa epifania.

São faces a moldar-se em disfarces,

com olhos mansos delineados

de uma pureza quase artificial,

com véus nos longos fios

e o esteticismo vazio

nos gloriosos templos lotados,

com gritos de louvores

que alimentam

a Guerra Santa.

 

Sermões encenados,

fervorosas cenas que mascaram

o preconceito e a intolerância

de um discurso quase teatral.


 

Ofício da palavra

 

Enquanto te espero,

crio decretos.

Designando uma nova lei...

Fica obrigatório

uma poesia por dia,

com ou sem regras!

Tanto faz.

Poderá ter tema,

sem título, ser precisa.

Livres

dos cânones

inquisitoriais,

das métricas e rimas.

Poderá,

ser clichê,

anistiado de padrões,

melodramático,

usando palavras abstratas,

neologismos...

Apenas uma regra:

que seja original

e fiel aos liames da

inventividade.


 

Como escreve o poeta

 

Aprecio o ímpeto vanguardeiro da poesia,

capaz de produzir tão bela imagem da mortal lágrima que percorre a íris da leitora apaixonada;

aprecio a utopia lírica que os poetas alimentam em suas almas,

o teatro de constelações e suas produções,

perpetuadas em verbetes que retratam a vida e a morte,

o amor e o ódio, a guerra e a paz.

 

 

A arte de colorir os céus

 

Fiando a teia da própria existência,

permanecerás na vigília ornamentada,

ansiosamente esperarás as flamas explosivas,

multicores,

observarás, atento da marquise de ladrilhos trincados;

prefere o silêncio,

não quer acordar o cão que repousa.

 

Observarás a enviesada estrela dourada

de partículas planas e reflexivas.

 

Plastificada e desnorteada edificação no pico da árvore

lacônica.

 

Esperarás...

Arranharás o céu da boca com seu canto, cantarás enquanto espera.

Usarás o vento para navegar os pensamentos, irá ao encontro de alguém que partiu.

 

Velarás o sono manso do cão, torcerá pelo silêncio.

 

Continuarás esperando a meia-noite, o badalar dos sinos da capela.

Atento...

Não despertará os monstros que vagueiam por seus pensamentos,

não lembrará da fome,

da ganância e da guerra,

apenas observará os fogos de artifício.

 

 



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Ivete Nenflidio é escritora, poeta, pesquisadora das manifestações populares, curadora artística de festivais e articuladora cultural especializada em Sustentabilidade Aplicada aos Negócios e Leis de Incentivo à Cultura. Como autora, publicou os livros: "Memórias Difusas", "País Estrangeiro - memórias de uma Brasil profundo", “Cartografias da saudade”, “O sereno que habita meus olhos”, “ATAQUE - cale-se agora e para sempre”, além do romance ficcional "Calendas de Março". Está finalizando a obra "Guardadora de memórias", com previsão de lançamento para o segundo semestre de 2022. Informações do site da autora: clica aqui