Trechos de “Filha”, livro de Nayara Noronha

          

por Nayara Noronha__





        Sou uma avó sem neta.

Ao contrário das mães que saem da maternidade com um bebê envolto em um cueiro nos braços, no dia trinta e um de julho minha filha carregava o peso da folha de papel com o registo de nascimento e morte de Ester (p. 13).

 

 

Por quarenta e cinco minutos, a piscina é tomada por senhorinhas como eu, com seus corpos deteriorados, flácidos, cheio de varizes, câimbras, pouca articulação, sem conseguir fazer os movimentos corretos, acreditando no poder da água em diminuir o impacto físico, o atrito, as dores da velhice. Capaz de a gente gastar mais tempo para entrar e sair da piscina do que se exercitando. Tudo bem, a maioria de nós estava ali mais para ter com quem conversar. Na piscina, voltamos a ser criança e a aula é uma farra danada. Mergulhamos a cabeça debaixo d’água, espirramos água umas nas outras, rimos da coleguinha escorregando com sua meinha no meio do exercício. Esquecemos dos nossos corpos velhos e nos deixamos ser tomadas por uma vivacidade que nem lembrávamos existir dentro de nós. Isso, não contei para Elena (p. 22)

 

 

Às vezes, as meninas se iludem com a ideia de que a vida começou no dia em que as pari, coitadas! Esquecem, ou melhor, não querem saber, que também já fui jovem cheia de sonhos. Um dia já havia sido como elas, mulheres destemidas. Mas a própria vida foi roubando meu tempo e dando para os outros. Foi sem querer que deixei de lado a música da jovem guarda, as danças com os passinhos coreografados, os filmes aguardados toda semana na tela quente, os passeios no parque de bicicleta, as leituras antes de dormir, até que todas as atividades que antes eram só minhas, todo o tempo que antes era só meu, passou a ser delas, do marido, do lar. Só nunca seria de Ester. (p.55).

 

Nas primeiras vezes que sentei para escrever, a impressão era que não teria nada para contar, as linhas continuariam vazias, as páginas em branco. Quem queria saber da minha história? Entretanto, foi só pegar a caneta e redigir a primeira frase, no canto esquerdo após a linha rosa da página do caderno feito por mamãe, as palavras me vinham tortas pela urgência de serem escritas (p.83).

 

Eu tive receio. Como se mede a qualidade de uma clínica de aborto? O número de mulheres que saem vivas? Ou o número de fetos que saem mortos? A gente fica sabendo de cada coisa sobre as violências que as mulheres sofrem nesses lugares.

Não contei para ninguém da nossa quase viagem para a Colômbia. Só você sabe dessa história. Cheguei a olhar preço de passagem e marcar a data, tudo para fazer um aborto legal e seguro. Até perdi o dinheiro do adiantamento que dei como sinal na clínica privada, eles não faziam reembolso. Tudo bem. Foi só naquele momento, no quase embarque, que percebi a diferença entre o medo natural da maternidade e a certeza de quem não deseja ser mãe.

Não me arrependo de ter escolhido seguir com a gravidez. É verdade, nada mais poderá me doer tanto. Ainda assim, Ester me fez mãe e isso é para sempre. (p. 108).

 

 

Agora, a mãe também parecia uma avó. Minha impressão é que ela envelheceu anos nos últimos meses. Suas bochechas redondas contrastavam com a fundura dos olhos. Os lábios esbranquiçados deixavam evidente a papada do pescoço herdada dos remédios. O rosto inchado não combinava com a magreza do resto do corpo. Os bracinhos eram galhos finos cobertos por uma pele de papel manchado. As mãos flácidas ressaltavam o azul das veias que seguiam até os dedos. As unhas sem fazer, com micose no dedão. Os ossos do colo saltavam, os seus seios quase desapareceram, restando apenas duas pelancas. A barriga sobressalente de gases destacava a ausência de bunda, sobre duas pernas cheias de varizes. A rasteirinha, nos pés, não escondia a joanete da lateral e só pioravam as rachaduras no calcanhar. Eu sempre me esquecia de comprar hidratante (p.120).

 

 

Pintar essas paredes de branco é apagar uma alegria que não veio. Eu não conseguiria sem você, Beto.

         Uma das minhas recordações mais bonitas nesse apartamento foi o dia que passamos a tarde pintando esses balões na parede. Você tinha feito cookies, lembra? É verdade, o Claudio tinha aprendido a passar café na prensa francesa, só queria tomar assim. Joana desenhava a parede. Na vitrola, o vinil do Clube da Esquina tocando de fundo, enquanto você se autoproclamava padrinho de Ester. Você ficou incitando a disputa entre Laura e Joana para ver quem seria a madrinha. Elas entraram na sua pilha e cada uma reivindicava o posto para si. Eu retrucava que Ester não seria batizada. Minha filha seria uma criança pagã. Ninguém estava interessado no batismo, a novidade era ter uma bebê na nossa turma.

         Ontem à noite, criei coragem de me aproximar do berço. Retirei o pano que o cobria e me reencontrei com os objetos de Ester. Item por item, me desfiz de tudo. Juntei os pacotes de fraldas, lenços umedecidos, sabonetes neutros em sacos. Arrumei na bolsa de viagem com os bodiezinhos, macacõezinhos, vestidinhos e gorrinhos com cheiro de guardado. Doei tudo para a sobrinha do Seu Luís, grávida de quatro meses. Ele trouxe a caixa de ferramentas, desmontou o berço e foi levando o que restava de Ester em várias viagens pelo elevador. Quando ele terminou, esse apertamento, como a mãe costuma chamar, nunca me pareceu tão pequeno (p. 122).




Nayara Noronha
nasceu na cidade de São Paulo em 1988 e mora em Belo Horizonte com seus dois gatos. É professora e pesquisadora na UFMG. Tem contos publicados em coletâneas. “Filha” (7Letras) é seu primeiro romance.