Era preciso “esperançar”, no sentido Freireano | Ivete Nenflidio

 por Taciana Oliveira__





Entrevistamos a escritora e poeta Ivete Nenflidio. Na pauta o lançamento do seu livro “ATAQUE - cale-se agora e para sempre”  publicado pela Kotter Editorial.


1 - De que forma foi pensada a construção estrutural de ATAQUE - cale-se agora e para sempre? Você parte de um processo intuitivo ou de um conceito pré-estabelecido?

Primeiro é importante frisar que o livro “Ataque” foi escrito, em grande parte, durante o período mais crítico da pandemia, por isso, às vezes, é tão asfixiante. Penso que o livro serve como um documentário, bastante temporal, pelo menos espero que seja apenas um retrato de um tempo breve, passageiro, espero que não perdure, pois seria muito difícil sobreviver a mais uma temporada como a que tivemos nos últimos anos.

 

Mas vamos lá, acredito que posso definir minha linha criativa como algo instintivo, eventualmente, preestabelecido e normalmente desorganizado, rsrs. Quando iniciei “Ataque” pensei em escrever sobre as formas de censura, perseguição, abandono e apagamento da classe artística, falar sobre as atitudes que tentam silenciar os artistas através de uma verdadeira “caça às bruxas”. O descaso do desgoverno federal com os trabalhadores do setor cultural, um dos mais afetados durante a pandemia, que deixou os profissionais totalmente desassistidos; isso, por si só, já seria um tema importante para colocar em pauta. Contudo, após algumas dezenas de páginas, percebi essa desorganização, senti que não poderia falar “apenas” sobre esse assunto, já que outras tantas tragédias estavam em curso. Dessa forma, fui me organizando para “criar imagens” usando palavras, como se elas pudessem externar e tatuar uma denúncia. Precisava colocar no papel os sentimentos que habitam em mim e que provocam um intenso desconforto, era como um chamado para retratar esse momento histórico. Do mesmo jeito, pensei em como atiçar as emoções nas pessoas que tivessem acesso ao texto, mais pelo lado empírico, do resgate das sensações, do que pelo racional, das notícias nuas, cruas e efêmeras que, de tantas, nos anestesiam.

 

 

2 - O teu livro é dividido em seis partes (seis cadernos) que dialogam com o momento atual que vivemos. Como escritora e mulher você se sente impelida a refletir sobre o seu tempo?

Antes de tudo, em meus textos a mulher intima seu espaço, usa sua voz, é como se eu emprestasse a minha para as tantas mulheres caladas, impedidas e coibidas.

 

Me senti impelida a falar do aumento da violência doméstica, sobre a exploração sexual de meninas, mas constatei que também precisava abordar outros temas, como, por exemplo, a volta do Brasil ao mapa da fome, a destruição aceleradíssima do meio ambiente, em especial dos biomas do Pantanal, Cerrado e Floresta Amazônica. Eram muitos os assuntos perturbadores, precisei organizar os textos, definir em quais cadernos cada um deles entraria. Foi um trabalho de identificar os poemas e conduzi-los aos seus devidos lugares de fala. Dessa forma, fui desenhando pequenos fascículos, contudo, depois de escrever os 4 primeiros cadernos, percebi que precisava finalizar a obra com poemas que pudessem chamar o leitor a refletir sobre as tragédias, mas buscando formas para o enfrentamento necessário. Era imprescindível reagir, reconquistar e reconstruir o que nos foi tirado a fórceps, restituir o que foi roubado ou sequestrado. Era preciso “esperançar”, no sentido Freireano! Então surgiram os dois últimos cadernos, o da “Resistência” e dos “Sons e do Silêncio”. Nestes dois últimos, reuni poemas que provocam o leitor a ser resiliente, resistir, ousar e lutar, e principalmente, a usar o poder de sua fala.

 

 

3 - Diante desse cenário hostil as questões de gênero e cidadania, quais foram os desafios enfrentados na produção e no conceito narrativo-estético da tua obra?

Nesse momento, fazer parte da história exige acreditar no futuro, trabalhando e construindo ele no presente. É essencial manter a cabeça erguida, agir com serenidade e determinação. Carece sobreviver, resistir, debater e fortalecer as vozes que foram historicamente silenciadas, enfrentar com coragem o duro trabalho de reconstrução, e mesmo construção, do país que se encontra em ruínas.

 

Como trabalhadora da cultura, sou uma das tantas mulheres que sofreram os impactos da pandemia; o setor cultural foi o primeiro a interromper as atividades e o último a restabelecer os projetos, afinal, muito do nosso trabalho foi adiado, ou cancelado; pouquíssimos foram recuperados. Mesmo agora, a política cultural encontra-se inoperante, esquecida e com investimentos ínfimos. Nós, profissionais da cultura, ainda estamos no processo de recolher os cacos e reorganizar as contas, que “insistem em chegar” todos os meses.

 

Os profissionais da arte, em geral, possuem um senso crítico apurado e um olhar sensível e humano sobre o mundo, essa visão é incompatível com a de governos autoritários, como o que se faz presente no momento da construção do livro. Este utiliza um discurso fascista, recheado de mentiras contra a classe artística, o que torna tudo muito mais difícil, a recuperação e o retorno são muito lentos. Além de tudo isso, o discurso do poder vigente legitimou uma parcela da sociedade a expor sua aversão à cultura, qualificando-a como algo dispensável e desnecessário, ignorando todo o seu potencial econômico e a importância para a formação da identidade do povo. Essa realidade inesperada se deu em decorrência dos discursos violentos, sectários, homofóbicos, racistas, misóginos, a defesa do armamento da população, além de uma visão negacionista da ciência. Essa parcela da população estava por aí escondida, o governo atual abriu a caixa de pandora e tudo que pode ser triste, maldoso e vil foi disseminado em nossa sociedade, restou a esperança de tempos melhores, que tento expor através da narrativa, sem é claro, esquecer do ambiente inóspito que estamos imersos.

 

 

4 - Quando você se percebe *poeta? O gênero poesia sempre foi a tua primeira opção?

Gosto muito de escrever sobre o mundo, às vezes são temas universais, ocasionalmente, algo trivial. Viajei durante muitos anos acompanhando um artista da música, tempos depois realizei a produção de turnês de músicos da cena internacional, percorrendo outras estradas, foram mais de 12 anos excursionando. Conheci todas as capitais brasileiras, mas foi no sertão, nos rincões do país que convivi com a minha verdadeira paixão. Nada me emociona mais do que a verdade do povo, suas mazelas, sua fé e força. Para mim, a inspiração está em ler o mundo e as pessoas. Comecei a registrar meus primeiros textos como um diário de bordo, eram contos, crônicas, cenas inspiradas nos diversos Brasis. Essas histórias, relatos de viagens ou de uma conversa com alguém pertencente a um universo cultural bem distante do meu, eram como um sopro, assim, registrava muita coisa, até que um dia resolvi criar um ‘blog’ chamado “Outros Brasis”, esse diário virtual acabou se transformando em meu primeiro manuscrito. De todas as artes, o teatro chegou primeiro, depois a música tomou conta, aos poucos fui consumindo um pouco de tudo, produzindo, idealizando, entregando projetos de todas as linguagens, me descobrindo como uma fazedora de cultura. Penso que o processo continua o mesmo, as pessoas e o mundo que nos cercam continuam exercendo um forte papel na minha vida, me ajudam a construir meus textos, mas também meus projetos de mapeamento da cultura brasileira.

 

 

5 - Como você descreveria para o leitor o teu livro Ataque - cale-se agora e para sempre?

Posso descrever o livro como um lugar de luta, “Ataque” é resistir, é pelejar contra a intolerância e a discriminação, é denunciar os privilégios e as injustiças, é refletir sobre a falta de compaixão, o ódio e o racismo. É lutar contra o fascismo, a misoginia, as mentiras e a ruptura do tecido social. É tentar unir o que foi afastado, é buscar o diálogo e se distanciar do discurso de ódio que hoje faz parte do nosso cotidiano, é lembrar de um país que vinha trilhando um caminho muito promissor e que ainda pode voltar a ele. Mais do que nunca, precisamos falar de poesia, da beleza das pequenas cenas do dia a dia. O livro é, também, uma singela homenagem ao Padre Júlio Lancelotti, que foi especialmente essencial aos mais necessitados durante o período mais cruel da pandemia, a lindíssima ilustração apresentada na capa é do artista plástico Paulo Nenflidio, que esboçou a marreta na série “Aquarela em papel algodão”, essa ferramenta pode destruir, mas também ajuda na construção de novas estruturas, e serve de alusão ao momento épico do padre quebrando as pedras embaixo de um viaduto para que as pessoas não fossem preteridas de acessar aquele espaço. Ela também é um símbolo condizente com a proposta do livro, pois assume meu desejo de querer reerguer esse país tão destruído após o golpe de 2016.

 

“Esperançando” e em vertigem, fui obrigada a imprimir em meus versos, além de belezas sutis, evidências dos terrores que se passavam diante dos meus olhos, e dos milhões de conterrâneos. Dessa forma, revisitei assuntos como: os interesses escusos por trás de tanta devastação, a ganância e os crimes ambientais cometidos pelas mineradoras e o agronegócio; além das novas formas de extermínio dos povos originários (indígenas) e tradicionais (quilombolas). Precisei falar sobre o novo segregacionismo e sobre o fanatismo religioso; sobre perdas, calamidades e abusos. O livro foi construído e reconstruído em seis cadernos: arte, mulheres, pandemia, devastação, resistência e, por último, o caderno dos sons e do silêncio. Assim nasceu “Ataque”! Um projeto do qual me orgulho muito, e desejo de coração, que retrate apenas um tempo que ficará no passado, como um recorte sombrio da nossa história, e que de tão prejudicial ao país e ao seu povo, sempre deverá ser lembrado pelas profundas marcas que deixou e exemplo do que nunca mais deverá ser repetido.




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Ivete Nenflidio é escritora, poeta, pesquisadora das manifestações populares, curadora artística de festivais e articuladora cultural especializada em Sustentabilidade Aplicada aos Negócios e Leis de Incentivo à Cultura. Como autora, publicou os livros: "Memórias Difusas", "País Estrangeiro - memórias de uma Brasil profundo", “Cartografias da saudade”, “O sereno que habita meus olhos”, “ATAQUE - cale-se agora e para sempre”, além do romance ficcional "Calendas de Março". Está finalizando a obra "Guardadora de memórias", com previsão de lançamento para o segundo semestre de 2022. 







Taciana Oliveira – Editora das revistas Laudelinas e Mirada e do Selo Editorial Mirada. Cineasta e comunicóloga.  Na vitrolinha não cansa de ouvir os versos de Patti Smith: I'm dancing barefoot heading for a spin. Some strange music draws me in…