Lago Azul, um conto de Bruna Sonast

 por Bruna Sonast___

 



               Indescritível era a paz que o menino sentia naquele domingo quando sentava ao banco rachado da praça, esta que não era condomínio e nem praça oficialmente, mas tinha ambas as funções. Escutava as crianças menores brincando no parquinho de areia misturada com bitucas de cigarros e cacos de vidro, enquanto o paredão do bar da esquina disputava atenção com os hinos do culto que já iniciava. O sol, nessas horas, amornava e refletia a cor melancólica do fim da tarde nas folhas das árvores e nos matos que cresciam teimosos, entre toda aquela gente.


                O menino sentiu o que nunca viveu em outro espaço. Lugares não costumam oferecer pouso para meninos cansados. Reparou, nos últimos tempos, que pertinho do bar existia uma casa com uma fachada onde estava escrita a frase “Biblioteca”. Até então, ele nunca tinha ouvido falar de bibliotecas em lugares assim. Percebeu também a nova decoração meio hippie que as donas do bar colocaram nas árvores ao redor. Eram uns objetos circulares e cheios de penas de pássaros que alguém uma vez comentou servirem para dar fim aos sonhos ruins. Talvez as duas quisessem proteção dos comentários escrotos sobre seus corpos e sobre a relação que mantinham e que as pessoas ao redor tomavam de conta mais do que elas. O menino ficou pensando que quando ninguém estivesse olhando levaria um daqueles objetos para casa. Talvez servisse de proteção para ele também. 


              Na outra extremidade da praça que não era praça e nem condomínio, mas tinha ambas as funções, estava a quadra e os pivetes jogando futebol, cercados por outros que fumavam um e gritavam palavrões, enquanto se espalhava a notícia sobre o domingo passado em que os homi ficaram doidos e chegaram com as armas apontadas. Estavam com sede de vingança, nesses tempos, encarando até as crianças pequenas com um olhar fuzil.


            O domingo estava em paz, e o menino esperava chegar Rafaela para dar uns amassos ali por trás dos matos crescidos e longe das vistas dos cristãos que louvavam ao Senhor aos pulos, como se pudessem expurgar os pecados do mundo inteiro. Menos os dele, que o menino gostava mesmo era de pecar com Rafaela toda as noites, e já não louvava ao Senhor desde que o irmão mais velho morreu com cinco tiros na rua estreita que cortava a praça, em um desses dias que os homi estavam com sede de vingança e olhares de fuzil.


               O menino gostava de pensar que antes de ser condomínio ou praça, todo aquele terreno devia ter sido um lago. Talvez de água azul, igual ao céu, como os que ele via nas novelas. Seja como fosse, o fato era que aquele domingo estava em paz e ele imerso no barulho de toda aquela gente que encontrava muitos modos de ocupar o pequeno lugar que era condomínio, praça, e também (re)pouso para meninos muito, muito cansados.

 

 

 




Bruna Sonast
é escritora e produtora cultural. Moradora do bairro Barroso, onde fica localizada a praça do Lago Azul. Publicou "vestígios" (2020), com nova impressão em 2021. Organizou e participou com poemas em "baRRósas: memória e poesia" (Mirada, 2021). Organizou "Escritas do Fim do Mundo" (2022). Publicou "mal dito coração" (Mirada, 2022). Tem textos publicados na Edição Atual da Mirada e na Revista Virtual Laudelinas. Articula e integra a coletiva baRRósas. Tem graduação em Letras e mestrado em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual do Ceará.