Quem, um microconto de Bruno Ramalho

 

por Bruno Ramalho__






Não se pode dizer que tenha sido um homem. Mulher tampouco e pouco importa. Quem quer que tenha estado aqui se compôs em tudo o que pôde. As noites em claro deixam seus rastos. Há pedaços amassados de papel em branco na lixeira. E escritos em linhas tortas habitam cada canto desse quarto.

Tinha astigmatismo, isso é certo. Talvez, um pouco mais velho, já com presbiopia, pois a letra, além de tosca, é maior onde a luz não dá bom vulto. Se bem que, com lágrimas inundando o silêncio notivagante, o garrancho pode ter sido somente um meio para o grito.

Não é possível saber quanto permaneceu, mas durou muito. Acho que por um sempre, pois não há tempo que possa com as entrelinhas que ainda se hospedam nessas brechas. Há vãos bastantes para elas nos rejuntes, entre os pisos, os tijolos e as peças do gesso suportando um desvão de estrelas. Quem esteve nesse quarto já não contava com a existência de um telhado.

Nas paredes, até mesmo o que é apenas risco soa poesia. Dessas que a gente não lê nem vê, nem ouve, mas percebe. Em sua emoção, quis se mostrar assim, como querem os poetas de passagem. Esses deixam suas paisagens em cada palavra escrita e nos silêncios entre elas.

Lendo tudo, pode-se dizer que nove em dez canções de Caetano lhe causariam lágrimas. E que Leminski já esteve em suas prateleiras bagunçando as delicadezas, violando as verdades e provocando pequenas mortes.

Da cama, o verso da porta de saída parece um mapa. Cada réstia de palavras aponta um caminho, embora se chegue a um só Norte, o das entranhas desse quem. Tenho certeza de que seu mundo amanhecia noite todos os dias, mas sem as trevas da melancolia, apenas para que pudesse vir de si uma nesga de luz.

O amor também se acomodou entre as quinas daqui. Há sinais de luta e manchas de suor, sem um vestígio de sangue ou dor. E há saudades imensas transbordando humores e inventando o texto. Será que morreu delas? Às vezes, se morre de uma saudade só de saber que ela virá. E, por isso, se escrevem bilhetes de despedida.

Enquanto interpreto as personas do hóspede ido, descubro que não estamos sós. Um mosquito repousa estático sobre uma palavra rabiscada. Tentei outrora entendê-la, mas não sei se li planos ou li pianos. O inseto, creio, tenta sugá-la o sangue, porque não pode lê-la, mas, sim, dela se embebedar.

E é nesse instante que percebo que não sei sequer quantos amanhãs passei aqui. Tenho vivido ontens de outrem, como se o calendário já não me servisse. Eu não sou páreo para o tempo, mas ora me convenço, derrotado, de que sucumbo docemente ao que leio e que me lê.

Então, surge um dedo de sol pelo vão da janela. Eis o amanhecer, uma senda para os poetas outonos e os escritos decíduos. Se enlouqueço? Me parece o destino para onde me leva o que sopra das letras retribuídas a esse hotel. Mas não. Acho que esse quarto se engendra em uma parte de mim. E, nele, só muitos estive, tantas vezes quantas, sóbrio, tenha precisado me encontrar.




Bruno Ramalho de Carvalho (1978, Rio de Janeiro, RJ) escreve poemas, diverte-se tocando despretensiosamente o flugelhorn e se interessa por filosofia. Médico ginecologista em Brasília, DF, atua na área da reprodução humana assistida. É autor dos livros A penúltima coisa que se faz (edição do autor, 1999); Do amor deveras e das quimeras (e-book, Emooby, 2011); e livra-me, poesia (Scortecci, 2019), todos de poesia. Tem poemas publicados em revistas e portais de literatura, como Gueto, Mallarmargens, Ruído Manifesto e Mirada. Tem, ainda, mais de 70 artigos publicados em periódicos científicos.