As formas selvagens da alegria | Tarso de Melo

 por Adriane Garcia__








Com este título bonito de várias maneiras, As formas selvagens da alegria, Tarso de Melo nos presenteia com um livro de poesia que mantém sua alta qualidade do início ao fim. Utilizando versos livres com uma rica variação de figuras de linguagem e sintaxe apurada – ao mesmo tempo simples – o poeta oferece imagens, melodia, reflexões. Dividido em três partes, “Entretanto”, “Navegar devagar” e “Raiz e minério”, podemos fazer a leitura de que o foco principal que o eu-lírico anuncia é o ato de resistir em meio a um mundo que desaba, que estoura de repente como as barragens das hidrelétricas ou as epidemias globais. Porém, orbitando o tema da tragédia, há um animal de estimação, uma árvore, uma música, um amigo: é a alegria que pode se infiltrar no cotidiano. E é a alegria na sua forma mais selvagem que o poeta nos revela.


Aqui, é interessante considerarmos selvagem em oposição a uma civilização que falha miseravelmente, uma civilização que, ao contrário do que promete, no senso comum, fornece junto com seu aclamado progresso a morte, o caos, a tristeza. Ao trazer para o entorno de um espírito atordoado a alegria, Tarso de Melo nos surpreende, pois é comum sentirmos constrangimento por nos percebermos alegres quando a civilização nos resulta (nos exige?) o contrário. Também é interessante para a leitura a consideração de selvagem como derivado de selva, o lugar, que nos remete aos ataques suicidas que a humanidade tem cometido contra os reinos terrestres – vegetal, animal, mineral. Um facho de luz atravessa a leitura quando a poesia alumbra: é um cão que irá nos ensinar (reensinar) a ser. Está no poema “Canino” o ápice da ideia que se desenvolve nessa valiosa coletânea.


São quarenta e nove poemas que nos falam sobre a falibilidade das certezas, a observação das coisas puras, o mar, a noite, a falta de futuro e a dificuldade de viver com essa impossibilidade. Nisso, o cenário pandêmico agrava o pensamento de fim de mundo, a falta de perspectivas obriga a encontrar novos motivos para viver: “era difícil saber, àquela altura,/ que não restaria nenhuma Grande História/ em que lançar nossos músculos”. Metáforas poderosas surgem diante da repetição de Sísifo: “plantar no dia a bomba do novo”. Tarso de Melo utiliza também a inversão dos ditados populares, como em “o cachorro olha a calçada/ e despreza as caravanas”, fazendo uma ressignificação não só do estabelecido, mas também a declaração de um estado de ânimo. Há um retorno ao primordial unindo tema e linguagem quando o poeta personifica, usa da prosopopeia, esse recurso da fantasia que a poesia alcança: “a noite também tem seu charme:/ mistura-se às sombras que o sol inventa/ e não lembra dos sonhos ao amanhecer”. É dos tempos imemoriais o nosso atribuir aos seres de outras espécies, aos elementos da natureza voz, pensamento, atitudes. É recorrente a ideia de construir um futuro quando ele não é mais visível, mas esse futuro está ligado ao passado mais longínquo, o da pergunta primordial, o da prosopopeia: o que nos diz a vida nos outros seres? A evocação de um olhar que pergunta no sentido de “olhar para tudo como se pela primeira vez”. O mundo como oráculo. Esse olhar é o olhar infantil, ancestral. Esse olhar é o olhar poeta, o olhar da poesia. É o olhar que salva o eu-lírico, definindo-se a si mesmo como “menino zonzo” construindo o extraordinário do assustadoramente comum.


A poesia e a alegria, então, fazem um pacto: nenhum dia sem traçar uma linha e a palavra aparece como salvação dos dias em que se pode tão pouco, dias de esperar. O que podemos além de entender? Sentir. Há um tom de suspensão no livro. Uma suspensão na qual intuímos que é preciso, diz-nos o poeta, desistir da arte da guerra para sonhar; mas como cessar a guerra quando somos atacados? Sendo um poeta atento aos dramas sociais, às desigualdades várias, ele nos conclama à ação. Nisso também a complexidade das ideias – e desse eu-lírico – em As formas selvagens da alegria. Encontramos um diálogo com Drummond que acontece explicitamente quando o poeta itabirano nos ensina a não perder tempo ao telefone.  Tarso de Melo vai sublinhar que esse conflito sobre o tempo perdido se dá entre mobilidade e imobilidade. O homem ao telefone é um homem inerte. Se Drummond nos diz que perdemos tempo de semear, Tarso nos mostrará que poderíamos ter semeado muito e nos convida a calcular uma distância incalculável. Para irmos de mãos dadas, é preciso irmos.


Não fazer ouvidos de mercador, mais que isso, o eu-lírico nos diz de dentro do sistema do consumo: “tapar os ouvidos ao mercador”, recusando o papel destinado, “o figurino estreito, sufocante”, a falsidade, o afastamento do verdadeiro eu para viver a guerra e o capitalismo. Em determinado momento, os versos fazem o elogio da escolha por aquilo que não serve para servir, como ser um ceramista, um escultor do barro, o que muito se assemelha com ser um poeta, cujo barro a ser moldado é a palavra, cujo excesso a ser tirado é o que aperfeiçoa o objeto. Tema e forma novamente: retirar os excessos é essencial para o poema e para viver.


Na seção intitulada “Navegar devagar”, o poeta fala do medo que nos assombra na iminência e na vivência das ditaduras, comparte conosco a angústia do período sombrio atravessado pelo país durante o governo de extrema-direita eleito em 2018 e faz uma crítica às instituições democráticas que muitas vezes se mostraram complacentes com o autoritarismo e os crimes de Jair Bolsonaro, soltando “notas de repúdio” quando deveriam agir. Tudo cabe no poema, quando se é um bom poema, Tarso de Melo prova isso o tempo todo. Em “Menor”, a saudade de um país que já houve. A leitura, então, caminha para o pessimismo e a desistência que vão se instalando. É o registro de uma época. O poeta desenha a metáfora perfeita de um sentimento nacional – pelo menos entre aqueles que se importam: “pedacinho a pedacinho/ o rejunte vai desistindo”, tudo envelhecendo, perdendo vigor, os efeitos econômicos da pandemia do coronavírus e da péssima gestão efetuada pelo governo desastroso e genocida: “encerramos nossas atividades”, a alegria é prima da tristeza, a placa no comércio legenda a morte. 


As formas selvagens da alegria é um livro que possui movimento na sua organização. Estados de espírito caminham na integralidade, do pessimismo à esperança: “você se afasta um pouco/ para ouvir o que o mundo diz//e invade outra forma de vida/ainda intacta – e mais selvagem”. Não uma esperança boba e gasta, de comerciais de TV, de frases feitas, mas uma esperança que não nega o luto e a luta em um rosto envelhecido, que não nega a morte na agenda de telefone, agora que tantas pessoas não existem mais. Uma esperança feita da emergência, da urgência dos afetos quando até mesmo os abraços que antes podiam ser fartos se tornaram insalubres, proibidos. A grande sabedoria desta poesia é o lugar em que recoloca os afetos. “como se apenas o vírus soubesse/o que ainda nos falta tocar”. 


De modo emocionante, As formas selvagens da alegria nos alerta para a dimensão ética do sujeito, são poemas que dizem da resistência em não se vender a um sistema que não merece reverência, do desejo de recomeçar um país destroçado, de perceber e sair do isolamento causado também pela dependência de computadores, da necessidade de desenvolver um olhar po(ético) para a alteridade, a fim de não se passar por outros seres humanos ou não humanos pensando que são descartáveis. A vida não pode ser tomada como descartável. Na dimensão ética do sujeito o poeta está nos dizendo “carpe diem”, antes que ele acabe. Para além do que propõe cada poema, o livro reflete sobre a palavra no mundo, sobre o humano como ser de linguagem, babélico e, portanto, de confusão de línguas. “só mesmo aquele que fala sozinho/sabe o que diz, diz o que sabe”. Lembramo-nos então da frase socrática “só sei que nada sei”. Não sabendo, arvoramo-nos em fingir que sabemos de tudo, que somos especialistas em qualquer assunto e em tudo podemos opinar ou – em uma postura menos arrogante – soltamos o nosso “sei lá”. “Lá” onde sabemos mas não temos (cons)ciência, “lá” onde sabemos de forma intuitiva, primeva; “lá” onde todos os elementos e seres do mundo partilhavam conosco – e ainda esperam partilhar – sua alegria selvagem. 


Touche pas à mon pote


é tudo estranho na cidade

semáforo vermelho nas entranhas

(sem farol, sem terra à vista)

os nomes que chamamos não respondem

nossos gritos se perdem no pregão


: a mão amiga irrompe imensa



Língua


falamos sempre numa língua estranha

nunca chegamos ao centro do mundo


digo e redigo: músico, músculo, musgo

(rodamos, rodamos, não damos em nada)


hindus ofendem curdos em inglês

franceses cospem lascas de latim


vitupérios rasgam o céu do império

uma mulher se cala à sombra de si


só mesmo aquele que fala sozinho

sabe o que diz, diz o que sabe


homens vão ao mar sem palavras

(ninguém se entende no convés)


navegam, naufragam, navegam

e nunca, nunca fazem sentido


Noutro


todo otimismo 

é filho de um grande equívoco,

me diz um amigo, convicto


eu

entre instintos ínfimos

apenas murmuro:

o meu nasceu noutro país,

hoje não sei seu destino


Fauna


gatos nunca dizem oi

senão à sua maneira


formigas recebem todas

o mesmo salário


baratas nunca sabem

a hora de ir embora


cachorros são visitas

em sua própria casa


cigarras fazem greve

até nos dias de folga


corujas desdenham

das ideias de Hegel


o sonho do louva-a-deus

é ser não praticante


bem-te-vis não ligam

para o nosso futuro


Outro justo


enquanto zanza

e lança aos assovios

uma canção que é toda sua

e um pouco de todos

que cruzam a mesma praça

o menino zonzo constrói

na órbita das horas

assustadoramente comuns

o absolutamente extraordinário

e assim mantém

a seu modo o mundo

a salvo

*** 

As formas selvagens da alegria

Tarso de Melo

Poesia

Ed. Alpharrabio

2022





Tarso de Melo é poeta e ensaísta, doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de São Paulo. Autor dos livros Íntimo desabrigo (Alpharrabio, Dobradura, 2017), Dois mil e quatrocentos quilômetros, aqui (com Carlos Augusto Lima; Luna Parque, 2018) e Rastros (martelo casa editorial, 2019), entre outros. Organizador de diversas obras coletivas, como Sobre poesia, ainda: cinco perguntas, cinquenta poetas (Lumme, 2019) e Antologia Poética CULT (2), e curador de atividades literárias em São Paulo.







Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você  (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé ( Caos e Letras, 2023)