Amarelo Queimado, crônica de Anthony Almeida

 Anthony Almeida__



Foto: Аlex Ugolkov




Um sol branco e silencioso ilumina o Cerrado, que vejo pela janela do ônibus. Se antes, mais cedo, quando despertamos em mais um dia de viagem, olhávamos admirados a paisagem dourada de amanhecer, agora outros contornos aparecem no ambiente e em nossos rostos. Em alguns trechos da viagem pelo norte mineiro, os arbustos e o capinzal louro de quilômetros atrás dão lugar a um chão queimado. As árvores retorcidas, ao invés de darem abrigo às juritis, permanecem ainda de pé, mas mortas e carbonizadas pela queimada. Apenas um ipê roxo, solitário e florido, sobrevive no meio do Cerrado incinerado.


As nossas caras, só de passagem, mas empáticas à situação, se retorcem num lamento. Diante do desmantelo, uma sobrancelha se arqueia decepcionada, um lábio faz um bico desolado. Suspiramos e o ônibus viaja por curvas cada vez mais acidentadas. Não é só da rodovia para os lados que a nossa vista mira preocupada. A cada nova curva, os contornos da viagem se tornam mais assombrados.  Numa placa: devagar — trecho com alto índice de acidentes. Da rodovia para frente, o sentimento de alerta se instaura. 


O passageiro 28, caminhoneiro e acostumado com esse asfalto, retorcido em curvas ainda mais fechadas, debocha de nossas expressões amedrontadas. Gaiato, grita para o motorista meter o pé, ultrapassar em local proibido, correr nas descidas, às vezes esburacadas. Sua mangação aumenta, principalmente, após os longos trechos de tráfego pesado. É quando a estrada está um pouco mais livre dos caminhões baús enfileirados, ou quando estes baús estão mais distantes uns dos outros, que ele mais berra. Corre motorista, acelera motorista, ultrapassa motorista. E gargalha. 


Num acostamento, após um trecho de trânsito vagaroso, descobrimos o motivo da lentidão: um caminhãozinho baú destroçado e queimado, um dos seus pneus distante do incêndio, furado e todo troncho, e uma viatura da Polícia Rodoviária Federal compõem a cena e explicam o bloqueio. Em segundos, a expressão do passageiro 28 se converte da zombaria à ponderação, depois ao pesar. 


Noutro acostamento, consideráveis quilômetros adiante, sem mais risadas dentro do ônibus, outro acidente fatal. Duas vacas malhadas mortas e uma moto verde, daquelas robustas, estilo de corrida, toda esbagaçada, deixaram o tráfego, outra vez, lento. Mais uma viatura da PRF fecha o bloqueio. Uma vez mais a cara do 28 é de luto. Não vimos nenhum corpo humano, mas é evidente que se presuma: o motoqueiro e o motorista do baú tiveram o mesmo destino das vacas malhadas. 


O terror e as condolências à mata, aos animais e aos homens, assim como a estrada, vão ficando para trás com o avanço das horas. O sol permanece branco e silencioso. Mas o Cerrado volta a amarelar. Atrás de um cercado abandonado e se despedaçando, o capinzal dourado e os arbustos voltam a se mostrar. Vão rareando, é verdade, mas ainda aparecem, têm grandes trechos abertos por pastos secos e os montinhos de cupinzeiros se multiplicam. 


É dentre o capim alto que o amarelo queimado se decora com uma mancha diferente. De dentro de uma arvorezinha toda, toda de copa amarela fogo, sai um inexplicável e único galho lotado de folhas verdes. Depois de toda essa rota, é bom ver o verde despontando.



Francisco Sá/MG. Agosto, 2022.






Anthony Almeida
é geógrafo, professor e cronista. Nasceu em Caruaru/PE e mora no Recife/PE. Pesquisa a Geografia Literária, escreve e estuda a crônica brasileira. É cronista da Revista Mirada, doutorando em Geografia, pela UFPE, e editor adjunto da RUBEM – Revista da Crônica. Contato: anthonypaalmeida@gmail.com