Dois textos do livro Um certo nascer ali, de Moacyr Godoy Moreira

por Moacyr Godoy Moreira__


 


                                                                                   . 01

 

O Brasil é um país em avançado processo de decomposição. Coisas neste estado costumam cheirar mal: os rios apodrecidos da maior cidade da nação, o lixo a céu aberto espalhado indiscriminadamente, as negociatas que perpassam cada município, cada repartição - toda e qualquer tratativa, com as gordas propinas, já incluídas.

 

Acham, alguns, que depois do trabalho realizado pelos saprófitas renascerá um novo ecossistema, sustentável, frondoso. Florinhas delicadas por sobre o limo que recobre a devastada paisagem, veios subterrâneos de uma água purificada, onde houve, em abundância, toda sorte de dejetos.

 

Não vejo assim: deste lamaçal de favores e desmandos, crimes encomendados e arregimentações religiosas espúrias, só espero uma degradação ainda maior, apocalíptica: uma perspectiva de matanças e miséria, infâmia e destruição.

 

*Texto de número 01, que consta na parte III do livro “Um certo nascer ali”, de Moacyr Godoy Moreira.



                                                                                   .30.

 

Hoje, pela primeira vez, ao olhar de relance o espelho, senti na imagem a presença de meu pai. Não somos de todo parecidos, mas os vincos que se fazem sob os olhos foram se instalando, tomando força e forma e nos colocaram frente a frente.

Senti então uma ternura e uma saudade que me encherem os olhos d'água. Mais que simplesmente a imagem, notei a expressão de meu pai, algo de sua austeridade, além do carinho vindo do rosto de um homem que ressurgia na projeção especular.

Depois da primeira impressão, passei a percorrer minha figura nos mais sutis detalhes, a busca pelo pai, porém, revelou-se em vão. Quanto mais insistia em vê-lo, menos tinha sucesso, deparando-me comigo numa inspeção que se revelou patética - estava num café e as pessoas começaram a notar o maluco da mesa do canto que não deixava de se admirar. Busquei sem conseguir seus olhos, que em silêncio nos apoiava, desde criança: chorava conosco os deslizes, comemorava impassível as conquistas.

Se já estava estranho um cara que não parava de se olhar no espelho, imagine um sujeito chorando, defronte ao vidro embaçado, emporcalhado, cheio de digitais físicas e mentais. De repente, porém, a presença de meu pai fez-se notar por inteiro. Chorei ainda mais, sem embaraço. Meu pai sempre despertou em mim uma saudade desconsolada.

Rios de lágrimas a refazer um trajeto inverso, ladeado pelas margens estreitas dos regatos, em que meu velho costumava pescar.

 

*Texto de número 30, que consta na parte I do livro “Um certo nascer ali”, de Moacyr Godoy Moreira.

 

 

 

 

 

Moacyr Vergara de Godoy Moreira (@moacyr_godoy_moreira_escritor), nascido em São Paulo em 1972, é médico e mestre em Literatura Brasileira. Publicou quatro livros pela Ateliê Editorial  — Lâmina do tempo (contos, 2002); República das bicicletas (crônicas, 2003), com projeto gráfico e capa da artista gráfica Silvana Zandomeni e prefácio de Lourenço Diaféria; e Ruídos urbanos (narrativas curtas, 2008), com prefácio de João Anzanello Carrascoza; e Soalho de tábua (contos escritos a partir de versos de Adélia Prado, cada texto tem uma epígrafe, retirada de um poema de Adélia, e o enredo parte da ideia sugerida pelo verso, 2012), com prefácio de Moacyr Scliar. Os dois últimos, além do atual lançamento, têm capa e ilustrações do artista plástico Enio Squeff. Além de Um certo nascer ali, mais dois livros (Um mundo de bancos nus, de contos e Luzes da natureza - com fotos e textos de sua autoria) serão lançados em breve pela editora Paraquedas. Atuou como cronista e crítico literário em diversos jornais e sites de cultura. Além da literatura, dedica-se à gestão corporativa de saúde, a partir do olhar da saúde e segurança do trabalho, desde 2010.