Giz a sangue | P. R. Schneider

por P. R. Schneider __



Foto: Amin TN



Enquanto o relógio cumpre suas funções, nem um pouco primitivas, mas normalizadas a ponto de serem naturais, alguém exerce também suas funções "naturalizadas", e nem um pouco naturais, de fato. Jovem, ainda, senti o súbito chamado do universo, exigindo de mim o novo, o desconhecido e a inconstância. Num dia qualquer, como quem quer que o dia seja normal, eu exigia do meu dia, propriamente, uma normalidade ortodoxa. Não queria ter expectativas, não queria o novo e nem a surpresa de saber que há algo flutuando no espaço à minha espera. Eu queria o normal, o involuído, sem atualizações programadas. O hoje, lamentavelmente monótono. Então entendi que a minha ânsia pelo normal é uma verdadeira alteração dessa normalidade.


Veja, querendo eu a anormalidade e a desejando, certamente fugiria da normalidade, pois em dias normais não há expectativas de nada. Mas eu queria que fosse um dia qualquer, daqueles que esquecemos no meio do calendário. Esses dias de meio do mês, em que somos empobrecidos pela falta de novidades e não se espera nada além do calmo dia, despejando suas gotas no mar do tempo. Mas aí, me deparei no muro da escola com a declaração de amor mais verdadeira e íntima que já me fizeram. Estava ali escrito como que vindo da eternidade, como se sempre estivesse ali e eu não me dei conta. Com letras enormes, riscado a giz meio sangue: SINTO SAUDADES DA SUA FEIURA. Deus! Aquilo tinha amor impregnado, tinha sentimentos tão profundos que jamais foram desvendados, quilômetros mais oceânicos do que eu gostaria de submergir, mas teria que ir, era isso ou deixar as coisas reais se perderem. Quem me declarou aquele amor tão único? — certamente não foi para mim, mas tomei-o, é meu. E farei desse amor incógnito, meu, unicamente.


Estava escrito feiura, então qualquer pessoa inserida nesse requisito pode se permitir deter desse amor. Não estou justificando que roubei o amor de alguém, porquê não é isso, eu aceitei o presente dado. Quem escreveu aquilo tinha um presente para dar e eu recebi com carinho, mas afinal quem escreveu isso no muro da escola? E como? Sempre tem pessoas no pátio, o vigia sempre observa tudo. Será que foi ele? Meu amor é o Francisco? Impossível, não pode ser, ele tem idade para ser meu pai, quer dizer, meu avô. Se eu perguntar a ele se viu alguém pichando o muro com uma declaração de amor, vai ficar parecendo que foi eu, e a escola inteira vai achar que amo uma pessoa feia. Está escrito feiura, claramente feiura. Era o chamado do mundo gritando meu nome.

Perguntei para os funcionários da escola, o vigia não viu nada, a merendeira também não, a secretária muito menos; mas a forma que eu perguntei não fez o menor sentido.


- Você viu algo de diferente na escola?


Não fazia o menor sentido! Quando perguntei isso, não é que eles não soubessem responder é que não havia nada de novo em lugar nenhum. Não para eles, para mim tudo era novo, fora da normalidade pedante de uma escola. Prossegui na minha busca, pensei na possibilidade de perguntar aos alunos do sexto ano que tem a sala virada para o muro, mas são crianças e não percebem nada. Já o Seu Pedro da bodega aqui da frente certamente sabe de alguma coisa, tudo que se passa fora ou dentro dessa escola ele sabe com detalhes estranhos, realmente. Refiz os passos de mais cedo e saí correndo assim que o sinal tocou às onze horas, Seu Pedro não estava mais lá, coincidentemente, e aí está mais uma alteração na normalidade. Quem mais saberia agora de quem fez aquela declaração e onde estaria Seu Pedro? Eu e todos os alunos notaram a ausência, aquilo foi uma sensação nova para mim, a ausência do normal. Como se tudo estivesse exigindo de mim uma compreensão do novo, do estrangeiro dentro da minha rotina. Seu Pedro não estava ali e eu pensei que ele tivesse morrido, mas ouvi de umas das mães que se aproximava do filho dizendo que ele foi no interior visitar parentes e que amanhã estaria de volta, ou depois de amanhã. Ou nunca, pensei. Não entendo por que penso essas coisas horríveis dentro de mim, sinto vergonha disso e nunca deixo que percebam essa maldade que coça na barriga. São coisas faladas por dentro, em segredo, que fora seriam exterminadoras.


Fui para casa em passinhos rápidos para apressar minha chegada, meu banho, minha janta, talvez um jogo de pega-pega na rua e depois dormir, e enfim, o dia de amanhã. E nesse tal amanhã eu descobriria quem escreveu aquela prova de amor somente para mim. Cheguei então, tomei banho rápido e ignorei minha mãe perguntando sobre as tarefas de casa, eu não costumo ignorá-la, geralmente o chinelo voa quando faço isso, mas hoje não, ela estava calma, extasiada com alguma coisa, mais uma fuga da normalidade que percebi depois. Minha irmã e meu irmão gostavam de ficar na calçada no fim de tarde jogando cartinhas, eles são muito pequenos e não entendem jogos, mas ficam lá ordenando aleatoriamente o baralho como se entendessem, apostam pedrinhas como dinheiro; minha irmã odeia perder então faz sempre questão de ganhar, outro dia o menino da casa da frente chamou ela de neguinha sabida, ela respondeu cuspindo fúria:


- Você também é nego!


O menino saiu chorando, acabara de descobrir que é preto. Acontece com todos nós, uma hora ou outra a gente descobre. Pode ser trágico ou epifânio; aprendi essa palavra na aula de literatura. E a uso para qualquer descoberta nítida e, ao mesmo tempo, improvável.


Jantei e dormi. Mentira, não consegui pregar o olho. Cada vez que tentava dormir vinha na mente aquelas letras rasgando o muro, minha cabeça imaginava como seria quem escreveu: olhos castanhos brilhando no sol quente, o cabelo preto ou pode ser loiro, mas no bairro quase não tem gente loira, só precisava ser alguém de verdade, alguém vivo. E depois de dormir poucos minutos o dia nasceu sem normalidades. Tinha uma construção do outro lado da rua, marteladas e um rádio de pilha me despertaram sem que mamãe precisasse fazer isso. E hoje ela ainda estava esquisita, calma e sem estresse. Peguei a mochila e fui para escola, esqueci de escovar os dentes, sentia o gosto do café amargando na língua.


Seu Pedro não estava lá ainda, e se tivesse eu não poderia falar com ele, esqueci as moedas para comprar bombom. E isso seria meu pretexto. Tive aula de português e história, sobre palavras homônimas e sobre a Revolução Francesa. Não consegui prestar atenção; enviei bilhetes para Rebeca, que se senta atrás de mim, perguntando se ela notou algo diferente na escola. Resposta negativa, claro. Ninguém notou nada de diferente. 


Acho que já sei quem escreveu aquilo, foi o professor João, de história, ou pior deve ter sido a professora Regina para o próprio João. Mas nenhum dos dois é feio, ou vai ver se acham belamente feios, por isso escreveram aquilo um para o outro. Seriam amantes em segredo? Nem tão segredo, todos veem como se olham, então a declaração não é para mim, e nem para ninguém. Porém, acredito ainda que seja de algum estudante. Quem?


No recreio eu perguntei para o vigia da noite que estava de saída. Ousei perguntar da maneira correta: quem escreveu aquela mensagem no muro? E ele disse que aquelas letras sempre estiveram ali, está antes da fundação da escola, aquele muro é da casa ao lado que é muito antiga e abandonada. Sumi na imensidão da vida.


Fiquei uns minutos com o lanche na mão e olhando o muro, no chão. Era um amor mais antigo que eu, não era meu e quem o teve talvez nem mais exista. O amor já morreu há muito tempo, mas eu o vejo aqui, arranhado no muro, vivo, vermelho e vivo. Poderia eu me apoderar do amor alheio? Já discuti sobre isso. Mas eu nunca tinha notado aquilo antes, e é por que nunca de fato vi aquele muro, sempre passava por lá correndo com meus colegas, e em um belo dia parei. O sinal tocou e eu fiquei ainda ali, com decepção e gosto de café amargo na língua. Era eu, o muro e a ausência. Queria contar para mamãe sobre essa nova descoberta, a ausência. Mas ela já está repleta de ausências, mais do que eu. Fico com as minhas, amando essas ausências.






P. R. Schneider -
Eu existo. Isso é o suficiente.