Os olhos atentos e a escrita irrequieta da dançarina Marisa Teixeira

 por Luiz Henrique Gurgel__






Uma cronista que ainda tinha muito a dizer e que já esteve presente nas páginas-tela aqui da revista Mirada, foi-se desse mundo. Certas pessoas que se vão de repente, costumam deixar a sensação de que partiram sem ter combinado antes. Fazia semanas que não trocava mensagens com ela. Desleixadamente, me lembrava disso e dizia para mim mesmo “preciso escrever para a Marisa, saber o que ela anda fazendo”. Adiava e não escrevia. Depois que ela se foi, vieram à memória flashes do que poderiam ser pequenos sinais quase imperceptíveis de sua doença. Marisa era discreta, o que sabia é que ela tinha ido morar na praia buscando qualidade de vida. Ela mantinha um grande apego e uma curiosidade enorme em relação ao viver, ao futuro, continuava a escrever e a se preocupar com as pessoas do Brasil e do mundo.

Marisa Teixeira deixou um livro de crônicas lindo. Poucas publicações deram a devida atenção a ele. Taciana Oliveira, aqui da Mirada – um espaço, aliás, fundamental para escritores e editoras independentes -  foi das primeiras a falar dele, entrevistando a autora. Era o primeiro livro dela, lançado depois dos 60 anos. Marisa era psicanalista e psicopedagoga aposentada da rede pública de São Paulo, embalava uma nova fase da vida como cronista.

A melhor forma de homenageá-la é falar deste seu rebento e estimular as pessoas a lê-lo. Lançado em plena pandemia, em 2020, A dançarina teve apresentação do poeta Tarso de Melo, algo que deixou Marisa muito feliz. O livro surgiu justamente depois dela participar de uma oficina com Tarso e Reynaldo Damazio.

Quando recebi do correio o pacote com o livro, a surpresa agradou de imediato. O formato lembrava um caderno de esboços, meio diário de viagem ou de impressões cotidianas ou tudo isso junto. O título e o traço do casal enlaçado num passo de dança aumentou a sensação.

Veio a leitura, ininterrupta por causa da escrita atraente e instigante, seguindo os passos e as aventuras da autora por salões de dança. E a imagem do caderno de esboços ficou ainda mais agregada à ideia de um diário com as agudas, descontraídas e divertidas reflexões da dançarina, fazia poucos anos que se tornara frequentadora ativa daqueles bailes.

E havia aquele outro detalhe importante, o fato de ela ser psicanalista. Mas isso não transformou o livro num chato tratado perscrutador de almas carentes e solitárias que frequentam esses recintos. Muito pelo contrário, e aí está uma das delícias de suas histórias, pois “Marisa nos leva com elegância para dentro do seu baile”, afirma Tarso de Melo na apresentação. Há no livro o lado diário e o lado cronista de uma observadora que também se coloca entre aqueles que estão sendo observados. E este ponto é mais um atrativo de A dançarina, estão lá as próprias ambiguidades da autora, colocadas tal qual – imagino - fazem exímias dançarinas de passo aparentemente incerto, faz que vai, não vai e acaba indo, gente com remelexo, que dança sincopado. A visão de Marisa é singular, desprovida de preconceitos.

Ela que não sabia dançar, entregou-se a esse mundo e seus espaços como uma espécie de “trégua existencial”, como explica num posfácio. E aí descobriu um universo tão vasto de tipos, de posturas, de códigos, de comportamentos, de harmonias e, obviamente, de ritmos que embalavam aquelas pessoas no salão e na vida. Era gente de toda idade, condição social, orientação sexual, tamanhos de pé, amadores ou profissionais da dança, além de gente encaixada em variadas formas de estado civil e de arranjos amorosos. Talvez gente que não tinha bem certo  o lugar de colocar o desejo.

 O corpo que se enlaçava a outro – tanto o da narradora quanto dos homens com quem dançava – acabaram se tornando enigmas, diz Marisa, pois as experiências eram únicas a cada contato, a cada forma de embalar, de conversar, de rebolar e de sentir o outro. De perceber como o próprio corpo ia se conduzir naquela dança.

A leitura despertou - permitam a confissão - uma coisa que sempre me fascinou, que é ver gente dançando, aos pares, em festas de casamento, aniversários ou bailes simplesmente. Meus pais, tios e tias sempre me pareceram exímios dançarinos e eu sentia uma espécie de gozo interno contemplando e imaginando a sensação boa que deviam ter com aquela união, tão azeitados em movimentos sincronizados. Ao menos assim me parecia, justo eu que nasci com a sensação de ter dois pés esquerdos, espécie de duplo gauche. Foi sempre torturante, só de imaginar, numa festa, que alguém pudesse me tirar pra dançar, já sentia calafrios, o medo terrível da minha cintura de bloco de concreto, o horror de imaginar que eu poderia derrubar a dama num elementar dois pra lá, dois pra cá.

Ainda assim, anos atrás, fui ao Rio de Janeiro e fiz questão de conhecer a famosa gafieira Estudantina, templo da dança na praça Tiradentes, que fechou as portas com a pandemia. Claro que fui até lá durante o dia, ou seja, horário em que não havia baile. Só para respirar um pouco daqueles ares.

As crônicas de Marisa foram publicadas nas redes sociais em quase uma década de rebolado, entre 2009 e 2019. Depois revistas e retrabalhadas para a publicação em livro. E é interessante notar enquanto avançamos na leitura como os textos vão ficando cada vez mais soltos, embalados por novos ritmos, ainda que o do forró fosse o predileto da autora.

Ela transformou o universo dos salões de baile numa divertida metáfora da vida e um surrado dito popular faz ainda mais sentido ao final da leitura: é preciso mesmo dançar conforme a música.

Marisa ainda tinha muito a dizer. Ultimamente, seus olhos pareciam aguçados para a vida de gente que foi viver à beira mar, correr e se exercitar no calçadão da praia. Parecia se perguntar que gente era aquela. Estranhar o banal é atributo essencial dos bons cronistas. Ela também estava atenta ao que seria de nós, temporariamente salvos, depois da última eleição, de um neofascismo que se avolumava. O olhar inquieto de Marisa Teixeira provocava e já está fazendo falta.





Marisa Teixeira
 nasceu na cidade de São Paulo e dedicou-se à psicologia escolar e educacional, à psicanálise e à pesquisa acadêmica. Em 2008 descobriu os salões de bailes. Em seguida, na tentativa de conciliar universos tão díspares, começou a narrar suas aventuras no formato de crônicas em seu perfil nas redes sociais, sob a categoria “A Dançarina”.  





Luiz Henrique Gurgel é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos "amores malfadados" (Ed. Primata, 2020)