A Melhor Bíblia | Resenha do livro A bandeja de Salomé, de Adriane Garcia

 por Pedro Américo de Farias___







A MELHOR BÍBLIA


Sobre o livro de poemas A bandeja de Salomé. Adriane Garcia. Nova Lima (MG): Caos&Letras, 2022


Belo Horizonte, 06/04/2023




A melhor Bíblia, até segunda avaliação, é a de Jerusalém. Falta a de Jerusa, além de tantas outras mulheres, Adriane et aliae. Mas já não falta. Quando cada mulher escreve a “sua”, para si mesma e para todas, está escrevendo a história de um povo, o seu, e da humanidade, a sua, feminina e masculina, e a história da crueldade ideologicamente produzida e ampliada, para oprimir e explorar.


Ao mesmo tempo não é da Bíblia que fala a poeta, não é a Bíblia que ela reescreve. É da vida de hoje, das mulheres deste mundo de hoje e do passado, das que obedecem não olhando para trás e das que preferem olhar e virar estátuas de sal, garantindo a dignidade. 


A bandeja de Salomé tem o seu miolo traduzido ao espanhol por Manuel Barrós e rodeado pela primeira orelha de Cinthia Kriemler, prefácio de Maria Valéria Rezende e quarta capa de Micheliny Verunschk, Paula Fábrio e Taciana Oliveira. Toda essa gente dispensa maus comentários, merecedora que é dos melhores. 


Adriane Garcia não faz charminho intelectual, não se fecha em bolha de modismo linguístico – control C, control V – nem busca a linha facilitadora para angariar leitores. Tem sua trilha, como Gil (“Meu caminho pelo mundo, eu mesmo traço/ quem sabe de mim sou eu, aquele abraço!...”), forjada na história vivida e estudada, caminhos de pesquisa em demanda da experiência de vida e luta dos povos daqui e de além. 


É entre os povos de um além tão longe, judeus do Oriente, que vai buscar, pelo Velho Testamento, a história da opressão do macho sobre a fêmea, é lá que vai encontrar a semelhança com o nosso próprio povo (tão derivado) e com os povos de tantas regiões do planeta, talvez mesmo com todos, no que toca à perversa desigualdade entre os direitos da mulher e os do homem.


Não estamos falando de comportamento: atitudes, gestos, impulsos da natureza animal, de que somos parte. Muito mais trágica é a condição humana, travestida de superioridade sobre os outros seres animais. Os humanos, capazes de pensar e construir, estabeleceram princípios de civilização, à sombra de valores morais regidos por deuses e deusas. Por estes e estas protegidos e punidos, passaram a viver escolhendo e segregando, distribuindo e roubando, violentando, estuprando, conquistando terras e povos, em guerras de expansão mundo afora.

Expliquem os historiadores e os sociólogos, porque eu aqui do que vim tratar foi da fala da mulher no discurso dos muitos livros do Velho Testamento (com alguma coisa do Novo), captada e traduzida, pela ótica da poeta Adriane Garcia, com seu poder de reinvenção e paródia.


E acho que já falei. 


\Há um rico repertório de frases que sublinhei e aqui parcialmente transcrevo, sem indicar de que poemas, para que vocês leitoras/ores possam ter o direito à busca: 


– Javé envia trevas: 

A guerra é um mundo de homens


– No mundo que se regozija e se perpetua com apedrejamentos

A tristeza é um sentimento que danifica os pulmões 


– O rei terá que dar enterro aos seus filhos

E até que a chuva caia, ela exige e espera

Feito uma leoa atravessando maio


Meu corpo é meu reino


Meu corpo não frequentará 

Seus banquetes

E seus amigos não freqüentarão  

O meu corpo



E quando à mulher se oferecer um reino

Ela dirá que prefere um povo



(mesmo os que estiveram conosco

tentarão calar o que uma mulher ensina).








Adriane Garciapoeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você  (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé ( Caos e Letras, 2023)







Pedro Américo de Farias - Nascido em Ouricuri – PE. Escreve e diz poesia, ensaia prosa crítica e ficcional. Licenciado em Letras, trabalha com palestras sobre temas da literatura de ficção e da poesia. Exerceu atividades de gestão cultural na Fundação de Cultura Cidade do Recife (1986 – 2014), onde desenvolveu inúmeros projetos, entre os quais o A Letra e a Voz, e integrou o Conselho Editorial da Cepe – Companhia Editora de Pernambuco (2011 – 2015). Mora em Belo Horizonte – MG. Publicou: Desaboios. Guaratinguetá: Penalux, 2020 Coisas: poemas etc. Recife: Linguaraz Editor, 2015; Par Ímpar. Com Wilson Araújo de Sousa. Ed. do Autor, 2009; Linguaraz. Audiolivro. Ed. do Autor, 2009; Picardia. Recife: Língua de Poeta, 1994; Conversas de pedra. Recife: Ed. Pirata, 1981; Livro sem título. Recife: Ed. do Autor, 1973. Ensaio: Ficção em Pernambuco – breve história, 2a ed. Com Cristhiano Aguiar e Socorro Nunes. Recife: Cepe, 2021; – Pernambuco: século e meio de ficção. Recife: Jornal do Commercio (Pernambuco Imortal III, encarte nº 8), 2001.