Breve Ato de Descascar Laranjas: Uma tentativa azul para o não esquecimento.

 por Taciana Oliveira__




Conversamos com a poeta e professora Bianca Monteiro Garcia. Na pauta o lançamento do seu livro breve ato de descascar laranjas, uma parceria de coedição entre as editoras  Macabéa  Edições e 7letras.  A obra fala do luto, da loucura e da clausura, através de uma divisão em quatro partes: descontinuidade de mohorovičić, crosta, manto e núcleo. Para a escritora e pesquisadora Martha Alckmin, breve ato de descascar laranjas "soa como uma luta contra o esquecimento".

Confira a entrevista:

1 - A literatura por vezes é um refúgio poético inevitável para que os autores expressem poeticamente sobre a morte.  Podemos afirmar que breve ato de descascar laranjas passeia entre o memorialismo e a sobrevivência existencial diante do luto


De fato. Acredito que em toda pulsão de morte, há também a pulsão de vida, e a sobrevivência de um luto passa tanto pela morte de si (morre uma parte de nós, quando alguém se vai) quanto pela sobrevivência e chegada de um novo eu (mais calejado pela vida, mas também mais forte por conta das mortes enfrentadas). breve ato de descascar laranjas está na brevidade da vida e nas coisas mais banais que ela proporciona, como o próprio título sugere, mas também está na ausência que a morte, o luto, nos traz, e, com ele, a luta contra o esquecimento. Os rostos das pessoas que se foram, assim como as conversas, as vozes de cada um, tendem a virar uma espécie de sépia envelhecida, desfigurada, amarelada. É contra isso que trago as cianotipias, além da escrita. Uma tentativa azul para o não esquecimento


 2 - O que você destacaria do processo de feitura do teu livro? A construção narrativa nasce de forma espontânea ou você buscou uma estrutura pré-estabelecida?


As revelações das fotos analógicas em cianotipia funcionam como poemas-chave e costuram todo o livro. Todas elas foram pensadas estrategicamente para compor poemas que estão entre as páginas de cada fotografia, e, assim, formar um fio condutor que perpassa todo o livro. Além disso, gosto de ressaltar a relação do ato de descascar laranjas com as camadas da terra (nomeadas nas quatro partes). O poema principal do livro, eu acredito que seja o Descontinuidade de Mohorovičić – fronteira entre a crosta e o manto –, trata justamente sobre a rotação da Terra e o sopro de vida que acontece durante esse movimento imperceptível (mas não quero conduzir a leitura e a interpretação de ninguém, eu juro [risos]). 


Apesar de alguns poemas terem sido escritos entre 2017 e 2022, o livro não tem caráter antológico. A construção narrativa foi pensada estruturalmente, sim, a partir de um eu poético que passa por camadas do luto (por duas vezes), da loucura proveniente do trauma dos lutos, da clausura (o eu poético sai da clausura de um hospital psiquiátrico e cai na clausura da pandemia da Covid-19).   


3 -  Blue (1993) é um filme experimental do cineasta britânico Derek Jarman, que foi lançado quatro meses antes de sua morte.  São 74 minutos para uma única perspectiva visual de uma tela monocromática azul em uma referência à cegueira do diretor, que também queria simbolizar a falta de visão do mundo em relação à sua condição de homossexual e soropositivo terminal . É uma obra que transcende  o arcabouço cinematográfico. O projeto gráfico de breve ato de descascar laranjas  segue uma proposta  visual desenhada em tom azul, em um design delicado e melancólico que dialoga com as referências fotográficas e biográficas dos teus poemas. De que forma você participa da criação dessa concepção visual ?  Foi uma escolha sua?

 

Participei do início ao fim e, desde o início, eu sabia que o livro precisava da cor azul em todo o projeto gráfico. Isso, inclusive, foi um grande desafio, por questões orçamentárias mesmo (publicar livro colorido no Brasil custa uma nota!). Acho que minha obsessão pela cor azul está para a obsessão de Alejandra Pizarnik pela cor lilás, e são duas cores bem próximas, que denotam melancolia como você disse. Mas minha editora, Priscila Branco, me fez uma observação bem preciosa: a cor azul é também utilizada como uma espécie de truque de luz na pintura. Acho que isso descreve bem o livro: melancolia e luz, luto e resgate da memória. Quanto às fotografias, visitei o acervo pessoal da minha família, abri as gavetas empoeiradas e emperradas, olhei demoradamente foto por foto para escolher aquelas que não só traduzem a minha família, mas que também ilustram a família das leitoras/dos leitores, para que também se identifiquem com esses gestos capturados pela câmera; como a pesquisadora e poeta Regina Azevedo diz no posfácio do livro: "A avó de Bianca se torna a minha avó, a sua. Eis a mágica dos poemas." É justamente isso que quero ao trazer essas fotos: que não sejam poemas somente íntimos, que sejam poemas de todas e todos os leitores do livro, afinal, o luto está em cada um de nós. 


4 - Quais as suas influências literárias? Elas de alguma forma te deram lastro para a publicação do teu livro?


Eita que lá vem lista grande! Mas, para adiantar, sempre digo que minha tríade do luto é: Simone Brantes (Quase todas as noites, 7letras), Ana Elisa Ribeiro (Álbum, Relicário) e Leila Danziger (Ano novo, 7letras). São a elas a quem eu sempre recorro quando preciso ler sobre o luto. Mas, além delas, o livro evoca Margaret Atwood (O conto da Aia), Drummond (A rosa do povo) e Padre Antônio Vieira (Sermão do demônio mudo) em um mesmo poema, o "71 flores no edredom". Trago também a escrita de Carla Diacov (A menstruação de Valter Hugo Mãe, Macondo; A munição compro depois, Cozinha Experimental) em um poema que falo sobre a clausura da pandemia, o qual finalizo com os seguintes versos: "a cidade cercada e nós nas bolhas/um novo jeito de habitar trincheiras". Pearl Jam, "Aftersun" (filme de Charlotte Wells, 2022) e "Uma história de amor e fúria" (filme de Luiz Bolognesi, 2013), também são fortes influências literárias (por que não?) e que me fizeram escrever esse livro. Tamara Kamenszain (O gueto, 7 letras), Guimarães Rosa (Primeiras estórias), Alejandra Pizarnik (A extração da pedra da loucura) e Goliarda Sapienza (Ancestral) também são algumas inspirações para o breve ato de descascar laranjas. Eu realmente estudei bastante para arquitetar a voz poética desse livro, ainda que essa miscelânea pareça, à primeira vista, desconexa, está tudo costurado. 


5  - "A poesia lida com o núcleo da existência humana: vida, morte, renovação, mudança”, diz  Margaret Atwood em carta anexada ao seu Poemas Tardios (Editora Rocco). Como você nos apresentaria breve ato de descascar laranjas ?


Acho que essa é a pergunta mais difícil de responder (risos), mas eu diria que breve ato de descascar laranjas fala sobre casas que descascam com lutos que batem em nossa porta em dias gelados. Luto, loucura e clausura costurados pelo fio condutor da memória, e ilustrados pelas camadas da Terra a partir da analogia de laranjas descascadas. A evocação de um tempo analógico e adormecido a partir de fotografias azuis. Justamente o azul, que é a cor da melancolia, a cor da loucura, mas também, a cor da luz.  




Lançamento: 05 de maio, sexta-feira, às 19h, na Livraria da Travessa, Rua Voluntários da Pátria, 97, Botafogo. O evento contará com um bate-papo de introdução promovido por Martha Alkimin (escritora do posfácio e pesquisadora da UFRJ) e Priscila Branco (editora do livro e, também, pesquisadora da UFRJ), além da própria autora, Bianca Monteiro Garcia


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Bianca Monteiro Garcia é editora da Macabéa Edições e da Taioba Publicações, formada em Letras e especialista em Literatura Brasileira pela UERJ. É também revisora e professora. Coministrou a oficina "Literatura e loucura: Maura Lopes Cançado, Lima Barreto e Stella do Patrocínio", na Coart/UERJ. Pesquisadora independente de poesia contemporânea escrita por mulheres, tem poemas publicados em revistas e plataformas digitais. breve ato de descascar laranjas é seu livro de estreia.










Taciana Oliveira – Editora nas revistas Laudelinas e Mirada e do Selo Editorial Mirada. Cineasta e comunicóloga. Dirigiu o documentário Clarice Lispector - A Descoberta do Mundo. Na vitrolinha não cansa de ouvir os versos de Patti Smith: I'm dancing barefoot heading for a spin. Some strange music draws me in…