O tempo de Gino, um conto de Luiz Henrique Gurgel

 por Luiz Henrique Gurgel___





Foto: Mostafa Meraji




Foi o porteiro do prédio quem indicou o salão. Antes, tinha sugerido cabeleireiros da redondeza, mas lembrou-se que nenhum fazia barba. “Tem o seu Gino”, disse como alternativa que sobrasse. Três quarteirões e vi, do outro lado da rua, por trás da acanhada porta de madeira, envidraçada, um velho franzino e arqueado aparando a costeleta de um freguês. Outros dois, tão velhos quanto ele, aguardavam sentados em cadeiras gastas com assentos de palhinha.


A minha entrada desviou a atenção dos velhos, fixados no raspar da navalha. Tinham rostos sulcados, barba branca, cerrada e amanhecida. O barbeiro também parou, ajeitou-se nos pés, ergueu a cabeça e mediu-me por trás das lentes grossas. Retomou o escanhoar sem dizer nada. Dei bom dia e a resposta de vozes baixas e roucas pareceu ensaiada. 


O arrastar dos sapatos do barbeiro, de um lado ao outro da cadeira, e a lâmina ritmada raspando a pele áspera do freguês marcavam o tempo no silêncio do salão. De vez em quando o velho parava, ajeitava os óculos e checava uma face, depois retomava o caminho por trás da cadeira para ver a outra. O chão de cimento com vermelhão gasto tinha a marca daquele rastejar, o vaivém de pêndulo manco riscou uma ferradura no chão.


Um pigarro ou o folhear do jornal amarrotado quebrava a regularidade. Fiz ruído, sem querer, incomodado e tentando achar posição na cadeira estreita que rangia ao menor movimento. Constrangido, permaneci quieto e duro. Os outros dois pareciam encaixados como esculturas, nenhum movimento, nenhum rangido.


Seu Gino escanhoava devagar e ninguém aparentava impaciência. O último velhote saiu da cadeira e se alongou com cuidado. Pagou e se despediu com aceno discreto. A cada troca, o barbeiro batia com uma toalha no assento e no encosto da cadeira. Esperei que terminasse, devolvesse a toalha ao ombro e, me olhando sem dizer nada, autorizava a ocupar o lugar. 


Era uma única cadeira de barbeiro, genuína Ferrante, “Cambuci, São Paulo”, como gravado no apoio dos pés. O espelho manchado e encardido, com moldura de madeira, tinha prateleiras curtas de vidro com loções, cremes e talcos em embalagens antigas e desbotadas. Frascos do talco Alma de Flores, potes de creme de barbear lavanda, além da loção Quina Petróleo San-Dar, que envelhecia tranquila, rótulo desbotado estilo Belle Époque. Cartões de visita, amarelados e contraídos, também se espalhavam nas cantoneiras do espelho e nas portas do antigo armário: Dr. Oscar Covello – Moléstias da Pele e Siphilis – rua dos Gusmões, 95 – Fone 3-4498; Alfaiataria Carvalho & Filhos – largo da Misericórdia nº1; Dr. J.B. Sampaio – Advogado – rua Direita, 78 – Fone 5-7783...


Gino usava uma grossa e longa fita de couro para afiar a navalha. Com um fio de voz, foi seco e direto: “Barba e cabelo?”.


As mãos retorcidas conduziam a navalha com precisão. No final, a lavanda barata e o Alma de Flores salpicado no rosto e no pescoço com um pincel de pelos macios. Fui o último cliente.   


Freguês do salão Paratodos, de Gino Bontempeli, a rotina era a mesma: máquina dois no cabelo e navalha na barba de quatro, cinco, seis dias ou mais de uma semana. Depois lavanda e Alma de Flores. Sei pouco da história do velho, silencioso e desconfiado, de pouca conversa e reacionário quando emite opinião. Nasceu numa fazenda de café no interior paulista. O pai veio da Itália, onde consertava bicicletas antes de partir para as trincheiras de 1914. Depois foi lutar na Abissínia até 1918, emigrando para o Brasil em seguida. Gino mudou-se para a capital com menos de vinte anos e abriu o salão em meados dos anos 40. Fez barba e cabelo de gerações no bairro, pais, filhos, netos. Sobrou quase ninguém. Era tudo o que eu sabia, tirado em quase dois anos de visitas irregulares.


Eu devia ser o mais jovem frequentador do salão. Gente da minha idade não teria paciência. Lembro de seis ou sete velhos que costumavam falar do tempo e que olhavam cismados quando me viam entrar. Estranhariam ter o rosto escanhoado, lavado e perfumado com lavanda e talco em menos de meia hora. Também passei a achar estranho. Quase dormia sentindo as mãos calosas e enrugadas do velho.


Os velhotes foram sumindo. O comum era chegar e dar com Gino sozinho, sentado na Ferrante, olhos fixos num horizonte qualquer em frente à parede, ou virado para a rua olhando o parco movimento. Aparentava o cansaço de uma espera que se alonga. Pareceu suspirar uma ou outra ocasião, nem percebia minha chegada. 


Eu já havia reparado no arcaico rádio-relógio analógico, no alto da prateleira. Marcava sempre a mesma hora, 12:25. Devia estar quebrado e seu Gino o esquecera. Num dia frio e preguiçoso, assustei. Sonolento, olhos meio cerrados e reclinado na cadeira, a navalha deslizando pelo pescoço, abri os olhos e vi girar o número cinco, dos minutos, surgindo em seguida outro número cinco. Certamente número nenhum tinha girado, eu é que sonhara acordado. No mesmo instante virei para o calendário da Mercearia Lusitana, na parede ao lado do espelho. Estava lá, do mesmo jeito, marcando como sempre, 27 de julho, quarta-feira de um ano que se perdeu. Tinha sido assim desde que comecei a frequentar a Paratodos. Era daqueles calendários fixos, sem mostrar o ano, em que três argolas coloridas iam sendo mudadas para marcar dia e mês.


O velho também não parecia mudar. A mesma fala baixa, a mesma expressão no rosto, as mesmas rugas, o mesmo cheiro de lavanda barata, o mesmo enfado.


Só o pé de avenca frondoso num xaxim, no canto mais alto do salão, dava sinal de mudança. O detalhe quase imperceptível eram algumas folhas amarelando na parte de baixo da planta. Na mesma quina de parede, mas no chão, outro vaso grande com a temível comigo-ninguém-pode, de caule forte, folhas inteiras e intactas de um verde arrogante com manchas branquicentas e desiguais. Era brilhosa e austera. A cada vez que me sentava na velha Ferrante, tinha a impressão que a avenca ia ganhando mais folhas amarelas e secas. Será que o velho não percebia? Era água demais? Ultimamente via poucos ramos viçosos e naquela tarde parecia ter sobrado apenas alguns ainda verdes. O velho também não estava nos melhores dias. Queixou-se de dores por causa de uma queda no banheiro, mancava mais que de costume e de quando em quando suspirava profundamente. Desatento, tirou pequeno lanho do meu pescoço, desculpou-se sem mesuras e embebeu algodão em álcool para passar no corte, ardeu. Ainda deixou uma costeleta maior que a outra e um pequenino tufo de barba debaixo do meu nariz. Terminou e quase me pôs cadeira a fora, mas com delicadeza, seu Gino nunca teve gesto brusco. Ia se esquecendo de me cobrar, quando viu que eu mesmo enfiava a mão no bolso. Apressado, fechou a porta atrás de mim.


Estranhei. Àquela hora, a barbearia de seu Gino fechada. Num canto, perto da velha porta de aço, jazia o xaxim com o pé de avenca completamente seco.






Luiz Henrique Gurgel 
é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos "amores malfadados" (Ed. Primata, 2020).