De Lidia Poët a Michalina Wislocka: sempre é tempo de falar sobre mulheres

 por Kamila Ataíde__







É fácil apagar histórias de mulheres. Estamos em 2023 e a luta por direitos, protagonismo, reconhecimento, liberdade, igualdade de oportunidades, respeito, ainda é incansável, não abre brechas para descanso ou respiro. Estamos em 2023 e ainda precisamos falar o óbvio e brigar pelo mínimo. Mas, apesar disso, fazemos um mundo cada vez mais consciente dos nomes de nossas precursoras e representantes atuais. Sempre é tempo de falar sobre mulheres, porque estamos, a todo tempo, criando, descobrindo, colaborando, pesquisando na arte, na ciência, na medicina, na filosofia e nos diversos campos de atuação profissional.


"Mulheres, elas têm mentes e elas têm almas, além de só coração. E elas têm ambição e elas têm talento, além de apenas beleza. E eu estou tão cansada das pessoas dizerem que é só para o amor que uma mulher serve", diz a protagonista de "Adoráveis Mulheres" (Netflix), Jo March, que se debruça em sua trajetória em busca do reconhecimento e valorização do seu trabalho como escritora, alguns anos após a Guerra Civil Americana. Tramas ficcionais também nos refletem, nos identificam, nos referenciam e, sobretudo, nos inspiram. O filme de Greta Gerwig, adaptado do livro "Little Woman" de Louisa May Alcott, faz o seu papel em falar sobre a realidade através de uma ficção, porque apesar de ser retratado em um recorte histórico de outrora, ainda é moderno sobre os dramas, dificuldades e inquietações contextuais do "ser mulher".


Certo dia, presenciei uma grande artista da música falando sobre suas inseguranças e de onde partiam os feedbacks mais incentivadores: de outras mulheres. Isso me fez refletir sobre como a rede de apoio mais honesta que nós temos é, frequentemente, composta por outras mulheres. Se reconhecer em dores e inseguranças de outras nos encaminha a uma cinesia de sustentação e apoio que só nós, em nossos diferentes recortes de raça, classe e sexualidade sabemos o que é e como acontece.


Esse reconhecimento e sustentação pode ser visto na série "As Leis de Lidia Poët", onde, em uma de suas diversas cenas memoráveis e inspiradoras, a protagonista é indagada por sua cliente: "Você já se sentiu julgada?", ao que responde: "Sempre. A todo o tempo. A cada segundo do meu dia". Pode parecer exagero aos olhos de alguns, mas essa me parece uma resposta em que muitas se reconhecerão. Nossas inseguranças estão baseadas em constantes julgamentos e expectativas patriarcais, nossos trabalhos sendo exercidos sob olhares que aguardam o menor deslize para serem punidos com toda severidade. Ao passo que nos reconhecemos umas nas outras, ganhamos força e criamos uma ode à libertação.


Lidia Poët é uma personalidade histórica, real. Foi uma advogada italiana formada na Faculdade de Direito da Universidade de Turim e a primeira mulher a ingressar na Ordem dos Advogados da Itália. Elaborou sua tese sobre a condição da mulher na sociedade e sobre o direito feminino ao voto. Sua trajetória foi marcada pela cassação do seu direito de advogar, sob o argumento de que o espaço da advocacia não era para mulheres, que deveriam se reservar às "tarefas do lar". Lidia foi uma afronta ao patriarcado do século 19, e por isso mesmo é inspiradora em todas as suas frentes. Apesar da série guardar seu lugar como trama ficcional, foi baseada em uma personalidade histórica feminina e ainda trabalha, através de ficção, um problema social atual. É preciso falar sobre mulheres e nossas vivências através dos mais diversos formatos narrativos, seja no cinema, na literatura, fotografia, artes visuais ou na música.


E o que falar sobre amor e sexualidade? Amor, aquela palavra reservada ao romântico, direcionada também a um papel fundamental da mulher para a sociedade patriarcal: amar. A sexualidade, em contrapartida, é palavra reservada ao obsceno, que nos foi negada de vivenciar. Aqui, dentre tantas outras, permeia a história de Michalina Wislocka, retratada no filme biográfico "A Arte de Amar", de Maria Sadowska.


Michalina foi uma médica ginecologista e primeira sexóloga da Polônia, que lutou pela liberdade sexual das mulheres e escreveu o livro "A Arte de Amar", onde incentiva as mulheres a se conhecerem e transformarem o sexo em um objeto além de "obrigações matrimoniais". Sua publicação foi proibida pelo governo de seu país na época, mas não impediu que Michalina escrevesse sua trajetória em torno dos direitos das mulheres. Foi co-fundadora da Sociedade de Maternidade Consciente e, entre tantas outras frentes, também foi chefe do Laboratório de Citodiagnóstico da Sociedade de Planejamento Familiar, lugar que se dedicou a apoiar a educação sexual de jovens e o oferecimento de cuidados de saúde sexual.


Estamos atuando em frentes revolucionárias há séculos, inspirando, liderando movimentos, desempenhando papéis significativos e lutando por lugares que nos foram proibidos para que outras pudessem ocupá-los. É neste movimento de reconhecimento que nos apoiamos e é falando sobre nós, nossas lutas e nossas histórias, que não nos deixaremos invisibilizar. Aqui está a importância da arte e do cinema na retratação desses fatos e, aqui também está a importância de mulheres desenvolverem obras artísticas sobre mulheres. É na criação de histórias ficcionais, na produção de obras biográficas, no ímpeto e no movimento de nós falarmos sobre nós, que as nossas histórias serão refletidas, apresentadas e, consequentemente, se tornarão inspiradoras e força motriz para nós mesmas. Greta Werwig, responsável pela adaptação de "Adoráveis Mulheres", diz que "favorecer as mulheres provoca um curto-circuito em algumas das estruturas de poder que têm sido opressoras para muitas pessoas", referindo-se à indústria Hollywoodiana. E é exatamente esse curto-circuito que pretendemos causar em todas as esferas possíveis. Em "As Leis de Lidia Poët", a personagem diz: "Haverá um tempo em que essas disputas pela dignidade das mulheres soarão grotescas".


Esperamos que sim, mas, até lá, sempre será tempo de falar sobre mulheres, e não deixaremos que apaguem nossas histórias. Não mais.













Kamila Ataíde
 - recifense, fotógrafa e comunicóloga. Trabalha com fotografia e comunicação desde 2013. É amante da música e da poesia imagética das coisas. Coleciona e captura memórias afetivas fotográficas.