Solo, areia e cinzas poéticas de Pâmela Rodrigues

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ENTREVISTA | Solo, areia e cinzas poéticas de Pâmela Rodrigues: a poesia como corpo político



“Escrevo em primeira pessoa, pois, a palavra é o único lugar em que é possível existir”, diz um trecho do poema que abre o livro  “Areia não é sujeira” (Pautá, 2023), obra de estreia de Pâmela Rodrigues (@escritorapamelarodrigues). Nascida em em 1990, na periferia do Distrito Federal, a poeta é formada pela Universidade de Brasília (UnB) em Serviço Social, atuando profissionalmente como assistente social. 


Pâmela se define como mulher bissexual, feminista, trabalhadora, bipolar e sagitariana não praticante e considera que “Areia não é sujeira” parte dessa experiência de ocupar um corpo de mulher e bissexual que vive com transtorno mental.  Sua obra aborda temas como cotidiano, identidade, pertencimento e memória corporificando solo, areia e cinzas como partes de uma mulher. 


O livro conta com a orelha assinada pela escritora e resenhista Thaís Campolina e prefácio da professora, pesquisadora, doutoranda em Literatura e também escritora Juliana Goldfarb. 


Confira a entrevista completa com Pâmela Rodrigues:

1 - Se você pudesse resumir os temas centrais do livro “Areia não é sujeira”, quais seriam? Por que escolher esses temas?

O livro é sobre a experiência de ocupar um corpo de mulher, bissexual, e que vive com transtorno mental. É sobre a matéria que dá vida à construção destas identidades, metaforizadas pelo solo, areia e cinzas. É também sobre memória. Um tributo às mulheres que vieram antes de nós, as mãos que forjam o mundo do que é considerado minúsculo, estes caquinhos do que somos feitas.


Estes são os temas que me fazem ser uma pessoa no mundo. São as dores e alegrias que conheço mais intimamente. O que me faz um ser político e coletivo. Não são somente as minhas dores, mas falo a partir delas para contar de quem as vive junto comigo. E é preciso lembrar e celebrar estas pessoas.

2 - O que motivou a escrita do livro “Areia não é sujeira”? Como foi o processo de escrita?

Os poemas que estão no livro foram escritos entre os anos de 2020 e 2022. Este foi um período de agravamento de um episódio de depressão a do meu diagnóstico de transtorno afetivo bipolar. É impossível falar da minha retomada da escrita sem mencionar a minha situação de saúde mental. Para mim, além de um teto todo meu, um salário, e contas pagas, alguma estabilidade de saúde mental foi fundamental para que eu retomasse o hábito da escrita, e me curasse um pouco através da palavra. Passei um longo período em sofrimento psíquico que foi se agravando e me exigiu um longo período de afastamento do trabalho, coincidentemente não conseguia escrever nada até que comecei o tratamento adequado para o meu transtorno. E a poesia se mostrou em muitos momentos uma ferramenta de dar nome e forma as minhas dores, materializá-las, para que houvesse possibilidade de tratar as feridas. Como nos ensina Audre Lorde, "na medida em que aprendemos a usar o resultado dessa investigação (a poesia) para dar poder à nossa vida, os medos que dominam nossa existência  e moldam nossos silêncios começam a perder seu controle sobre nós." Por isso, num movimento de interdependência, o processo de cura me moveu a voltar a escrever, e a escrita ajudou a me curar aos poucos.


Este primeiro movimento despertou meu interesse para aprofundar meu estudo do processo de escrita e comecei a participar de diferentes oficinas. Dou destaque especial à oficina "Mulheres que escrevem a poesia contemporânea", conduzida por Taís Bravo. Nela fomos provocadas a escrever a ira, com/sobre o corpo, o desejo, e aquilo que não se diz. Muitos poemas que compõem o livro surgiram destes exercícios. Outra oficina importante para a produção dos poemas que habitam "Areia não é sujeira", foi conduzida por Thaís Campolina: "Estranho Cotidiano: revelando a poesia ao rés-do-chão". Onde apurei meu olhar para as pequenezas, a memória, o cotidiano, a cidade e os objetos. Também foi onde me surgiu a imagem de terra e seus desdobramentos, o solo, areia e cinzas.


Após estes encontros passei a catalogar os poemas que já havia escrito cada um no seu terreno de um dos capítulos. Durante o processo de revisão dos poemas me dei conta da linha que os ligava, que juntos contavam uma fase de construção de um corpo, um corpo feito de terra, como o que dizem que deus criou. E a minha subversão é fazer um corpo de mulher direto do barro e não de uma costela roubada de um homem. Percebi que os poemas andavam juntos por um terreno que moldava seu movimento e ritmo. Os textos que formam o solo são aqueles em que estão plantadas as sementes do que dá forma à identidade e história, sejam pessoas, cenários, acontecimentos, memórias, afetos. A areia é fluída, pouco fértil e instável, como os poemas que falam de uma sexualidade negada, envergonhada, e uma identidade de gênero atravessada por dor e abuso. As cinzas parecem o fim, mas também podem proporcionar continuidade. Aprendi que o cerrado se adaptou ao incêndio, para sobreviver. A poesia nesse capítulo sangra, mas dizer essa ferida é também achar o caminho de estancá-la, e recomeçar do que parece ser terra arrasada, mas é possibilidade.

3 - Quais são as suas principais influências literárias? E que livros influenciaram diretamente a obra?

Hoje minhas referências literárias são em sua maioria mulheres, que gosto do modo simples, mas extremamente profundo de escrever: Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Chimamanda Ngozi Adichie, Ana Martins Marques, Aline Bei,  Ryane Leão, Upile Chisala, Wislawa Szymborska e Lilian Sais. Também me inspiro em alguns homens, como: Itamar Vieira Júnior, Jeferson Tenório, Caio Fernando Abreu e Mario Quintana.


Como comentei, os poemas do livro foram escritos ao longo de três anos. Foi um período em que eu buscava me reaproximar da literatura e da escrita por meio da participação em oficinas. Fui apresentada a escritoras contemporâneas, que sem dúvida foram fundamentais para reavivar a palavra em mim. Os livros de Ryane Leão, "Tudo nela brilha e queima"e "Jamais peço desculpas por me derramar", me reaproximaram da poesia, e me apresentaram a possibilidade do texto enquanto ferramenta de cura. Foram farol em especial para os poemas do capítulo "cinzas". 


Bianca Gonçalves em sua plaquete "A sexualidade de meninas ex-crentes" apresenta um experiência de encontro com a sexualidade dissidente e o desejo a partir da vivência de profunda vigilância e controle sobre os corpos por meio da religiosidade. A minha identificação com o livro está expressa em alguns dos poemas do capítulo "Areia", que busca apresentar a imagem de um corpo marcado pelo desejo contido, transbordado, e atravessado também pela violência. 


O capítulo "Solo" é uma tentativa de inventariar o que determina as raízes, por meio das relações familiares, ancestralidade, memória, a relação com a cidade, brasilidade, tudo o que determina o ser por aproximação ou estranhamento. As obras "A libertação de Laura", de Helena Zelic, "Torto Arado", de Itamar Vieira Júnior e "Pequena Coreografia do Adeus", de Aline Bei estavam por perto me fazendo pensar em tudo que veio antes de mim, e que vive e seguirá comigo.


4 - Dentre todos os autores que você citou, qual te inspira mais e por que? 


Hoje minha maior inspiração literária é a Aline Bei. Eu admiro muito o como ela respeita o espaço que a palavra precisa. E às vezes o espaço é literal, entre as linhas que se quebram rompendo regras e expectativas. É preciso mastigar as histórias de Aline com cuidado, como quem evita as espinhas de um peixe cozido, e deixá-las acordar dentro de nós um órgão por vez. Ler Aline Bei nos exige ouvir a música escondida entre tuas palavras, que nos convida para dançar sua pequena coreografia, tamanho é o ritmo que seu texto tem. Penso que ela consegue contar histórias cheias de dores, mas nunca esquece de nos abraçar ao final com suas palavras. E além disso, é das pessoas mais generosas que a literatura permitiu que eu encontrasse. Nas suas oficinas e falas, ela não hesita em dividir todo o seu talento e entrega à arte, nos pegando pela mão para dividir o seu processo de escrita.


5 - Além da literatura, quais são as suas outras inspirações? 


Minha matéria de inspiração é a história das mulheres que admiro, o cotidiano e seus tons de sublime. Escrevo muito a partir das minhas memórias e de quem me cerca, dos acontecimentos, dos afetos, das cenas e histórias que roubo na rua, das notícias. É o miúdo que me inspira e move a palavra em mim.

6 - Você fala em uma retomada à escrita com os poemas do livro de estreia. Você já escrevia antes? Como começou a escrever?

A escrita para mim sempre foi um mecanismo importante para processar o movimento do mundo e da minha própria vida. Muitas vezes foi estratégia de tentativa de romper os silêncios que me foram impostos de diferentes formas em diversos momentos, mesmo que o que eu escrevesse fosse só para mim. Infelizmente nunca fui disciplinada o suficiente para manter diários, então os primeiros registros dos meus textos são da adolescência, cuja grande maioria eram cartas, e alguns contos curtos. Ao ingressar na graduação minha escrita foi cooptada pela necessidade de falar o dialeto acadêmico, e fiquei por um longo tempo sem escrever nada poético ou ficcional. Fiquei entre os anos de 2013 e 2018 em silêncio, deixando as palavras formarem um dique que felizmente se rompeu em 2019. A partir de então voltei a servir a mesa para as palavras, recebendo-as bem sempre que decidem me visitar. Voltei a escutar as loucas que moram no sótão da minha cabeça, como bem me ensinou Rosa Montero. Desde 2019 tenho gasto cadernos, notas de celular e arquivos de texto com poemas e pequenos contos. Tenho feito da escrita um recurso de sobrevivência e objeto de estudo. Passei a ser adicta às oficinas de escrita criativa que vêm me abrindo os caminhos da literatura. Em 2021 decidi começar a partilhar meus textos no humilde perfil de instagram @escritorapamelarodrigues.


7 - Qual foi o primeiro poema que escreveu e como se sentiu?


O primeiro texto que chamei de poema foi um texto que escrevi em 2020 sobre a minha relação com meu companheiro, que se chama “Dois”. Senti que era a primeira vez que conseguia falar de algo com tanta clareza e verdade. Parecia que tinha descoberto um novo idioma, o meio de comunicação do meu corpo com o mundo. E desde então sinto que só posso ser verdadeiramente compreendida por meio da poesia. É bonito, mas assustador estar completamente despida diante de quem quiser me ler.


8 - O que você sente ao escrever um poema? 


Quando escrevo um poema acesso alguém que existe em mim, que é toda moléculas de poesia. A poesia me faz alcançar meu corpo. Com ela aprendo a ocupá-lo, entendo suas margens, esquinas e abismos. E com a poesia que nomeio as emoções que escorrem dos meus olhos, entalam na garganta, gelam e inflamam o ventre, afetam os órgãos internos, alteram o tom da pele para caber em cada situação. Eu só sei estar no mundo porque lembrei como escrever, e também que é possível gritar numa folha em branco. 


Escrever poemas é uma tentativa de sobreviver, é emprestar sua matéria para algo que vai permanecer além de nós mesmos. E isso não é a soberba de achar que a literatura vai me tornar imortal. É a magia de ter entendido que a poesia reverbera, abre caminhos e afetos em cada um que nos lê, e é bonito saber que algo que criamos pode afetar as pessoas, no sentido de mover suas sinapses para criar sensações e imagens. Puro mistério. Eu sinto que a palavra faz a gente teimar contra a morte. O poema me arrasta para olhar nos olhos as verdades que só cabem nos versos. 

9 - Como você definiria seu estilo?

Não sou grande conhecedora da escrita enquanto técnica. Mas a minha matéria é o cotidiano, a memória, talvez isso aponte que o meu principal recurso estético nesta obra é a autoficção. Gosto de escrever de modo claro e simples, que é a língua que falo enquanto pessoa, assistente social e não poderia ser diferente enquanto escritora. "gosto que minha avó entenda o que escrevo"

10 - Como é o seu processo de escrita?

Eu diria que meu processo de escrita é bem espontâneo. Na maior parte do tempo eu espero a palavra me visitar e tenho sempre à mão cadernos, ou as notas do celular para não deixá-la escapar. É muito comum me surgirem ideias de textos durante tarefas diárias, enquanto ando de carro e observo o entorno, ou durante o trabalho. Como Aline Bei me ensinou, tento permanecer em estado permanente de escrita, mantendo os olhos atentos ao que pode ser matéria da literatura. Por isso também respeito os momentos de silêncio, a germinação não faz barulho, pelo menos, não que seja audível aos ouvidos humanos. Meus textos descansam bastante antes da edição, às vezes dormem tanto, que quando os encontro parece que nem fui eu quem os escrevi. Gosto de cuidar da edição e eles terminam bem diferente do que começaram. Durante a edição pode ser que os textos mudem inclusive de gênero. Já transformei crônicas em poemas, e o que eu achava ser poema em conto. É a palavra quem me diz onde e como ela quer ir.

11 - Você tem algum ritual de preparação para a escrita? Tem alguma meta diária de escrita?

Infelizmente tenho uma mente muito caótica para estabelecer qualquer rotina, até mesmo de escrita. Me esforço bastante para não deixar as ideias escaparem, inclusive as ruins, escrevendo-as sempre que me surgem. Por esta falta de disciplina eu faço muitas oficinas de escrita, às vezes três ou quatro ao mesmo tempo. Além de conhecer novos autores contemporâneos, aproveito bastante as provocações e exercícios para produzir. Acho que poderia dizer que o meu ritual de escrita é participar de oficinas e laboratórios de escrita, é onde mais aprendo e me divirto. Também tento ler no mínimo três vezes ao dia, mas isso também é suscetível a falhas.

12 - Quais são os seus projetos atuais de escrita? O que vem por aí?

Atualmente tenho me debruçado mais na escrita de contos. Pretendo escrever um livro reunindo as histórias que escrevo, que têm mulheres como protagonistas. Mas o meu grande sonho é escrever um romance baseado na história de vida da minha avó materna.









Pâmela Rodrigues, nasceu em 1990, na periferia do Distrito Federal. Escreve seus silêncios desde que consegue se lembrar. É formada em serviço social pela UnB e trabalha como assistente social. É mulher cis, bissexual, feminista, trabalhadora, bipolar e sagitariana não praticante. Após longo período mantendo a escritora adormecida, em 2019, a sua loucura reavivou a poeta. Desde 2021 põe suas palavras no mundo, no perfil @escritorapamelarodrigues, e em coletâneas de poemas. “Areia não é sujeira” (Pautá, 2023) é seu primeiro livro.