Horizontes de Profanação na Arte de Contar Histórias - Abraçar a morte

 por Lígia Borges__



Exu
                             
HORIZONS OF PROFANATION IN THE ART OF STORYTELLING - Embracing death

HORIZONTES DE PROFANACIÓN EN EL ARTE DE NARRAR – Abrazar la muerte


RESUMO: O pulso dessas palavras ensaia uma desestabilização a uma associação frequente na tradição da arte de contar histórias com o viés sagrado. A fisicalidade da performance narrativa, o sopro da contadora de histórias, percorre, questiona, confronta e permite-se conduzir por trilhas míticas, pedagógicas e filosóficas para embalar uma dança entre o sagrado e o profano, fluxo análogo à vida e morte.


Palavras-chaves: Profanação; tradição oral; performance narrativa.


ABSTRACT: The pulse of these words rehearses a destabilization of a frequent association in the tradition of the art of storytelling with a sacred bias. The physicalith of the narrative performance, the breath of the storyteller, travels, questions, confronts and allows herself to be led along mythical, pedagogical and philosophical paths to pack a dance between the sacred and the profane, a flow analogous to life and death.


Keywords: Profanation; oral tradition; narrative perform.


RESUMEN: El pulso de estas palavras ensaya una desestabilización de una asociación frecuente en la tradición del arte de contar historias con un sesgo sagrado. La fisicalidad de la performance narrativa, el soplo del cuentacuentos, viaja, interpela, confronta y se deja conducir por caminos míticos, pedagógicos y filosóficos para empaquetar una danza entre lo sagrado y lo profano, un fluir análogo a la vida y la muerte.


Palavras llave: Profanación; tradición oral; performance narrativa.

 

Introdução  


 Adentro o solo da arte de contar histórias, a partir do entrelugar de artista e pesquisadora. Parto aqui da frequente associação entre essa arte com uma face sagrada que sustenta seu elo mítico, muitas vezes ao se lançar um olhar idílico para a tradição oral. Com frequência e relevância uma oposição é apontada ao se propor desvelamentos sócio-históricos às narrativas, desnudando o que Barthes delineou como a face apolítica do mito.o mito é uma fala roubada e restituída. Simplesmente, a fala que se restitui não é exatamente a mesma que foi roubada: trazida de volta não foi colocada no seu lugar exato. (p. 217) Atingimos assim o próprio princípio do mito: transforma a história em natureza (BARTHES, 2003, p. 221).”


Tenho trilhado esse estudo, mas a abordagem aqui, perambula por crenças em que o sagrado abraça o profano, abalando-se por sendas míticas: narrativas que friccionam realidade e ficção, questionando assim cosmologias coloniais, que preconizam essa separação e estruturam à reboque relações de natureza e cultura. Entrevejo relevantes diálogos da profanação com um viés político ligados a horizontes de desmistificação e estranhamento. Afirmar e trilhar a profanação enquanto encruzilhada para ligação com o sagrado dentro da tradição da arte de narrar, no entanto, mesmo mantendo tesa uma aliança com um elo mítico, representa um ato político de esquiva etnocêntrica.


            Ao lidar com questões fundamentais da condição humana, a arte de narrar encontra na morte um paradigma universal. Driblá-la é eixo de boa parte das narrativas. Personificada em diversas delas, sua face aterrorizante pode ser abalada por traços desastrados, cômicos. Pactos e acordos são realizados com ela, o abraço é encarado como dança, aproximação radical, que não despreza o medo, a tristeza, a revolta, o luto. Sugere o cruzar de vias a exalar aromas de cosmo-percepções, vereda exalada pelo sopro da contadora de histórias em um feminino afirmado como deslocamento de perspectivas patriarcais, atreladas à colonialidade. O sopro agrega vocalidade, gesto, silencio, ritmo, ruído: elementos que em performance comunicam uma narrativa. Sua fisicalidade é encarada como geografia que sustenta perplexidades de estabelecer diálogos escancarados, inesperados com o fim da vida e paradoxalmente, assim também a abraça. De forma análoga à catarse na tragédia, como desvendar de arqueologias pessoais.


Horizontes de profanação

 

               Esse horizonte ginga com o giro epistemológico[1] das ciências encantadas em que a experiência do sagrado não despreza o profano. Essa dança expõe as divergências com as crenças monoteístas que sustentam dualidade entre o bem e o mal, Deus e o Diabo.  Busca uma trilha de liberdade da subjugação à onipotência de uma divindade única, sinalizando para uma multiplicidade das visões acerca do sagrado.  Deuses, enquanto plurais são falhos, espelham nossas fraquezas, sombras e também potências. Quando esse espelhamento desvela camadas de identidade soterradas, desencontradas, emerge junto uma potência emancipadora do mito. Octávio Paz ao refletir sobre tradições e rupturas no contexto de produção poética também traça paralelos entre o sagrado e o profano. Trago aqui algumas citações de “Os Filhos do Barro” que legitimam as diversas trilhas poéticas, radicalidades de um eu-lírico transposto e a necessidade de liberdade para transpor solos do sagrado e do profano:

 

 E a linguagem que fala é a linguagem dos sonhos, os símbolos e as metáforas numa estranha aliança do sagrado com o profano e do sublime com o obsceno (2013, p. 54).

A consciência poética do Ocidente viveu a morte de Deus como um mito. Ou melhor, essa morte foi realmente um mito e não um simples episódio na história das ideias religiosas de nossa sociedade (p. 68)

A sedução que os mitos exercem sobre nós não reside no caráter religioso de tais textos – essas crenças não são as nossas – mas no fato de que em todos eles a fabulação poética transfigura o mundo e a realidade” (p. 69)

O poeta é o geógrafo e o historiador do céu e do inferno (p. 69)

 

                Octávio Paz oferece chaves para visualizar a força emancipadora do sopro quando abraçada à poesia, assim como abordagens para o sagrado livres de dogmatismos. Essa é uma arena possível para o desenvolvimento de uma contadora de histórias que além de dar a voz à tradição pode confrontá-la e reescrevê-la.


                Retorno ao campo mítico. Elegi três divindades provindas de mitologias de diferentes continentes e me vi diante de uma grande encruzilhada para optar por um início. A ênfase ao feminino apontada me levaria a Kali, da mitologia hindu. Dionísio, da mitologia grega e sua associação com o teatro também seria um ótimo disparador. Mas diante da encruzilhada, dou voz a Exu. Laroyê Exu![2] Sigo assim a estrada das minhas crenças e afinidades ritualísticas. Exu, na mitologia dos orixás é o primeiro a ser saudado e incorporar a própria encruzilhada, Exu mora também na dúvida e nas suas bifurcações suscitadas por elas.



Exu existe nesse lado de cá do Atlântico, múltiplo no uno, para nos mostrar que o mundo não se sustenta em uma ordem dicotômica. O que é investido para ser centro está encruzado ao que apontado como margem. (p. 28)


Vadeia, Exu, nas asas do vento, nos redemoinhos da existência, nos entroncamentos da vida e no perder de vista. Uma de suas traquinagens prediletas se dá no encantamento da dúvida. Como ele brinca e se diverte com a nossa obsessão pelos esclarecimentos, pela verdade... e porque ri da fragilidade desses nossos regimes, opera nos vazios deixados por nossos próprios discursos. Exu, longe de ser a palavra que salva, é que encanta. (RUFINO, 2019, p.  35)

 


        “Exu não tinha riqueza, não tinha fazenda, não tinha rio, não tinha profissão, nem artes, nem missão. Exu vagabundeava pelo mundo sem paradeiro.” (PRANDI, 2019, p. 40). Foi visitar Oxalá e passou 16 anos lá observando, sem nada perguntar, como ele fabricava os homens. Oxalá fez dele o guardião da encruzilhada, a quem se deve fazer uma oferenda antes de adentrá-la. Sendo conhecedor de todas as histórias, Exu aconselhou Olofim-Olodumare durante a criação do universo e assim ganhou reconhecimento para ser louvado antes de qualquer empreitada. Foi também dono de uma fome incontrolável. Comeu toda a comida, toda a bebida, o pasto, as árvores, já ia começar a engolir o mar. O oráculo ordenou que para aplacar sua fome, toda vez que se fizesse uma oferenda aos orixás era preciso começar com ele. 


          Exu também é dono de malícias, trambiques, promove guerras, rivalidades e pode ser vingativo. Criador de rupturas e de emboscadas, convida a percorrer seus paradoxos e abraçar suas incertezas.


Diferentemente das imagens dos outros orixás,

que são mantidas dentro das casas e dos templos,

toda vez que os humanos fazem uma imagem de Exu

ela é mantida fora. (PRANDI, 2019, p. 67).



 

             Exu inspira a olhar para fora do templo, estimulando assim, uma conexão mais humana com o sagrado, menos idealizada, com permissão da desconfiança, irreverência. A risada de Exu abre os caminhos entre o interior e o exterior dos templos, um bom espaço-tempo para as narrativas que abraçam o sagrado e o profano, o sublime e o grotesco. Exu inspira inclusive a desmistificação, a percorrer trilhas dentro-fora dos encantos, templos.


               Prossigo com a mitologia hindu e a deusa Kali. A divindade dialoga com as forças humanas sombrias, o desejo de destruição. Ela é representada como uma mulher exuberante, com uma nudez primordial, quatro ou oito braços, olhos ferozes, cabelos revoltos e língua saltada para fora. Traz um colar de crânios e uma saia com braços decepados. Uma energia incontrolável que se alimenta do tempo, dá a luz a ele e depois o devora incessantemente. O seu nascimento está associado a uma energia condensada de várias divindades direcionadas na destruição de um demônio com poderes exterminadores. Kali, montada em um leão destrói o demônio e bebe do seu sangue. Realiza então uma dança frenética sobre os corpos que ela decepou nessa batalha que faz o próprio mundo tremer. Assim, Shiva, seu consorte se lança junto aos demônios, ela o pisoteia e só assim retoma a consciência, evitando que o mundo desabasse.


             Dar luz ao tempo para depois devorá-lo. Dançar sobre os corpos decepados. Essa ação destruidora associada a um princípio feminino pode desbravar transgressões de gênero em dinamismos exalados pela cosmologia hindu ela inspira a ação transformadora possível.


Dessa forma, segundo a mitologia, através desses mistérios, a deusa Kali atua no universo ao criá-lo, fazer sua manutenção e ao destruí-lo, quando preciso. Normalmente essa deusa é associada aos grandes momentos de transformação no mundo devido a essas características potentes de transformação. Também usa a crueldade e a brutalidade para mostrar a seus devotos a sabedoria última das coisas – para dar fim às ilusões e através da experiência e da vivência do sofrimento e da dor, ela conduz seus devotos à transformação. (SALVADOR, 2009, p. 13,14)


             Nos rastros dessa transformação é importante reafirmar seu aspecto assustador, mantendo a chama divina.


A imagem é repulsiva, mas paradoxalmente ela é psicologicamente reconfortadora. Para os que adoram Kali de formas socialmente aceitáveis (a grande maioria de seus devotos), a deusa permite a oportunidade de reconhecer e elaborar a ocorrência do violento e irracional em suas vidas. (...) Por sua própria repulsividade, Kali insinua o fato de ela ter superado toda a oposição dos contrários e poder, em consequência, salvar seus devotos de cair nesta oposição. (GOHN, 1988, p.163 apud SALVADOR, 2009, p. 16)


         Essa abordagem contextualiza em um viés psicológico a potência emancipadora das narrativas abraçando o que é repulsivo, estranho, difícil de encarar. A possibilidade de tradução poética para os sentimentos mais sórdidos, aquilo que a realidade abomina tem um lugar reconfortante na arte, na catarse. 


         No campo das artes cênicas, impossível abordar a profanação sem falar do seu deus, Dionísio.


No panteão grego, Dioniso é um deus à parte. É um deus errante, vagabundo, um deus de lugar nenhum e de todo lugar. Ao mesmo tempo, exige ser plenamente reconhecido ali onde está de passagem, ocupar seu lugar, sua preeminência, e sobretudo assegurar-se de seu culto em Tebas, pois foi lá que nasceu. Entra na cidade como um personagem que vem de longe, um estrangeiro excêntrico. Volta a Tebas como à sua terra natal, para ser bem recebido e aceito, para, de certa forma, provar que ali é sua morada oficial. A um só tempo vagabundo e sedentário, ele representa, entre os deuses gregos, segundo a fórmula de Louis Gernet, a figura do outro, do que é diferente, desnorteante, desconcertante, anômico. (VERNANT, 2000, p. 144)


 

             Essa aliança com a alteridade, o estado de transição e a proximidade com os seres humanos o colocam em um lugar especial entre o sagrado e o profano. Da duradoura relação entre Sêmele e Zeus, ele nasceu. Sêmele deseja que Zeus se apresente em todo o seu resplendor diante dela e quando ele cede ao pedido, ela é queimada por sua luminosidade flamejante. Já grávida de Dionísio, Zeus o arranca do seu útero para salvá-lo e transforma a própria cocha em útero. É um nascimento exótico, assim como o bebê na sua relação com o divino.


          Mais crescido, ele segue uma sina perambulante ao lado de seu séquito de bacantes, mulheres delirantes e fanáticas. O grupo sofre várias perseguições, mas com o poder divino de Dionísio vai se livrando delas. Segue em direção à Ásia, onde ganha traços orientais, fazendo crescer seu mistério assim como o séquito. Adulto cheio de marcas, ritos e perseguições retorna a Tebas disfarçado como um sacerdote. “Sacerdote ambulante, vestido de mulher, ele usa os cabelos compridos [...] ar sedutor, falante... tudo o que pode perturbar e irritar Penteu, o semeado do solo de Tebas”. (VERNANT, 2000, p. 152). Agora, um jovem rei intrigado com a presença daqueles que considera um bando de vagabundos, que ameaçam a ordem da cidade e por isso deseja expulsá-los.


          Dionísio ameaça uma ordem racional que sustenta Tebas, propondo outro vínculo com o divino. “Pretende introduzir um fermento que abra uma dimensão nova na vida diária de cada um”. (VERNANT, 2000, p. 153). Sua chegada é como uma onda que abala sobretudo as mulheres que rompem com as expectativas e vão para as montanhas, os bosques, entregam-se a loucuras. Uma estupefação geral se instala visto que ao mesmo tempo em que a reação das mulheres escandaliza a sociedade, há algo que soa harmônico, pois remete a uma integração com a vida selvagem e faz inclusive brotar fertilidade da terra. Penteu tentara aprisionar Dionísio e suas seguidoras, está intrigado diante dos fatos: na fuga de Dionísio seu palácio real se incendeia, dando conta de que aquelas “mulheres angelicais se tornaram fúrias assassinas” (VERNANT, 2000, p. 155).


          Finalmente os dois, Penteu e Dionísio, encaram-se: ambos com a mesma idade, primos, nascidos naquele território. Muitas semelhanças e avessos. Dionísio consegue com seu discurso sedutor convencer Penteu a espiar “o mundo feminino desregrado”. E assim Penteu se disfarça do próprio Dionísio: feminino, vagabundo, sobe em uma árvore alta para observar as bacantes, dentre elas sua mãe, Ágave. Percebem a presença de um estranho, invasor e em meio à loucura, tomam ares agressivos. As mulheres esquartejam-no em um sacrifício dionisíaco. Delirante e alterada é a própria mãe que espeta a cabeça do filho, acreditando tratar-se de um bicho.


A volta de Dioniso para casa, em Tebas, esbarrou com a incompreensão e provocou um drama durante todo tempo em que a cidade foi incapaz de estabelecer o vínculo entre as pessoas da terra e o estrangeiro, entre os sedentários e os viajantes, entre, por um lado, sua vontade de ser sempre a mesma, de continuar idêntica a si mesma, de se negar a mudar e, por outro, o estrangeiro, o diferente, o outro. Enquanto não há possibilidade de combinar esses contrários, produz-se uma coisa aterradora: os que encarnam o vínculo incondicional com o imutável, os que proclamam a permanência necessária de seus valores tradicionais diante do que é diferente deles, do que os questiona e os obriga a terem sobre si mesmos um olhar diferente, são exatamente estes – os que afirmam sua identidade, os cidadãos gregos convictos de sua superioridade – que se jogam na alteridade absoluta, no horror, no monstruoso. (VERNANT, 2000, p. 160)

 

        

           Na leitura estabelecida por Vernant do mito se espelha o dilema entre tradição e ruptura, sagrado e profano. Dionísio encarna um paradoxo sedutor, que impele às transformações. Ele é um catalisador imponderável e questiona os alicerces morais da sociedade. Os elementos da dança, da transcendência, da alteração da consciência, assim como em Kali, saltam como referências fundantes e operadoras do questionamento da ordem vigente. A vagabundagem o aproxima de Exu.


          Depois desta perambulação mítica, cerco contextos pedagógicos e filosóficos em diálogo com o âmbito cercado. Começo com um conjunto de textos publicados entre 1994 e 1998 por Jorge Larrosa, transformados em um livro: “Pedagogia Profana”, onde palavras e ideias se insinuam como “danças, piruetas e mascaradas”. Assim se desenha o subtítulo da obra.



Para além até mesmo de ideias apropriadas e apropriáveis, talvez seja hora de tentar trabalhar no campo pedagógico pensando e escrevendo de uma forma que se pretende indisciplinada, insegura e imprópria. (...) As palavras comuns começam a nos parecer sem qualquer sabor ou nos soar irremediavelmente falsas e vazias (2015, p. 7)

 


          Há um amplo questionamento das bases da pedagogia tradicional, de alguns valores associados a ela. “Distanciados de qualquer pretensão de objetividade, de universalidade ou de sistematicidade, e inclusive de qualquer pretensão de verdade, nem por isso renunciam a produzir efeitos de sentido” (p. 7). Há de fato um ensaio inteiramente dedicado ao que ele denomina “a produção, a dissolução e o uso da realidade nos aparatos pedagógicos e nos meios de comunicação” (p. 149). Intitulado “Agamenon e seu Porqueiro”, ali, Larrosa destrincha limites entre “um jogo no qual o poder da verdade está a serviço da verdade do poder” (p. 152). O título provém de Juan de Mairena, que Larrosa revela como “um dos trinta e seis heterônimos ou apócrifos inventados por Antonio Machado” (:149), tido por ele como um dos maiores poetas espanhóis do século XX. Larrosa traz o seguinte um apólogo do poeta:


 “A verdade é a verdade, diga-a Agamenon ou

seu porqueiro.

Agamenon:  De acordo

O porqueiro: Não me convence”

(apud LARROSA, 2015, p. 149)

 

               O mítico herói Agamenon é raptado para um contexto para dar voz ao inominado porqueiro, que questiona a universalidade e eternidade da verdade corroborada pelo rei. Larrosa prossegue o desnudamento da verdade e sua máscara monárquica, nos discursos pedagógicos.


             Resta a pergunta se a operação poética de Juan de Mairena iria ao encontro da provocação de Barthes de confrontar a face despolitizada do mito: “a melhor arma contra o mito talvez seja mitifica-lo a ele próprio e produzir um mito artificial; e este mito reconstituído será uma verdadeira mitologia. Visto que o mito rouba a linguagem, por que não roubá-lo também?” (BARTHES, 2003. p. 227) A profanação da pedagogia seguiria assim, em paralelo à proposta de Barthes, desmistificando alguns temas tão recorrentes nessa área do conhecimento: a autoconsciência, legibilidade, infância, seriedade, tarefas. Não é esse seu propósito explícito, mas o diálogo com o descontrole, a despretensão, a indisciplina, acaba por trazer chaves emancipadoras para a dança avistada aqui.


             A pedagogia profana caminha sobre os destroços de projetos pedagógicos excludentes, limitados, desprovidos de riso, de malícia. Caminha cega por esse terreno destroçado abraçada à imprevisibilidade. Uma cegueira por vezes oracular, outras, desabrochando sentidos escondidos pela hegemonia da visão ou ainda, constatando sua própria limitação, mas sedenta de porvires.


Enquanto Larrosa circunscreve seu horizonte de profanação à pedagogia, Agamben o substantiva e o torna plural: “Profanações”. Assim, essa possibilidade é cercada em circunstâncias diversas, já que formas de vida atravessadas pela sacralidade se presentificam em dispositivos que atravessam a linguagem, a política, a jurisdição, a economia.  Agamben trata da inviabilidade da profanação no contexto deflagrado por Benjamin, a partir do qual o capitalismo é a religião que domina nosso tempo cujo culto é permanente. Culto esse, destinado a própria culpa e não para sua expiação, proposta intrínseca a boa parte dos cultos religiosos. Segundo ele, na esfera do consumo não há cisão possível, o mercado absorve a linguagem, o corpo humano, a sexualidade.


A máquina capitalista se renova e permanece deglutindo resistências, silêncios, identidades. Em um contexto permeado por aflições, Agamben deixa uma provocação:A profanação do improfanável é a tarefa política da geração que vem.” (2007, p. 71)


Ainda que assinalando a inviabilidade da profanação, o elogio que intitula o texto mantém teso o paradoxo que escancara terror e a sede de revolução em um mesmo gesto, onde a escrita desvenda as armadilhas do seu espectro e prossegue no seu desbravar. Qual horizonte possível para narradores encararem a tarefa política proposta por Agamben?


Larrosa, Barthes e o próprio Agamben encararam as contradições e prosseguiram seus estudos no confronto e provocação possíveis. Veredas férteis em meio à aridez da vampirização do capital. Contadores de histórias devem entregar seu sangue ao sacrifício? O filósofo convida a observar como a força do capital pode estar implicada nos discursos que sustentam diferentes visões e alianças com as margens possíveis. Avistar essas contradições sugere a importância de observar as grandes estruturas que operam as camadas da sacralização do mercado, em meio às batalhas pela sobrevivência e às mercantilizações ligada ao exercício de contador de histórias.


Quem pode encarar o desafio proposto por Agamben? Filósofos, contadores de histórias, historiadores, economistas, psicanalistas, anarquistas, artivistas, hackers, xamãs, sacerdotes, mágicos, deuses? A classificação seja em ofícios, gêneros, subdivisões diversas não estariam operando nessa mesma lógica mercantil? Alguma lucidez individual ou coletiva dará conta? Melhor seria pensar em uma embriaguez ou uma combinação, terceira margem entre elas? Ou só são mitos a serem desvendados?


Ao evocar Exu, Kali e Dionísio, há margens de rito e poesia que podem simplesmente ser desmistificados na sua face vertiginosa, mas diante dessa paragem eles sugerem o drible ao etnocentrismo e sendas de dissolução de conceitos, técnicas, ordens, discursos. Outras epistemologias, cosmologias que possam devastar a história de quem foi educado e docilizou seu tempo e espaço na lógica capitalista, colonial. Uma inversão capaz de conjugar o assombro necessário para continuar a percorrer a trilha da utopia, sua necessária imaginação, com sentidos despertos para as distopias que se apresentam nos nossos tempos.


Laroyê Exu! Jay Kali Maa! Evoé Baco!


Então vindo de lugares tão distantes, apenas despertaram e se reuniram ali: os três eleitos à Santíssima Trindade da Profanação em volta de uma fogueira para dançar celebrando o apocalipse. Acolheram o meteoro, a pandemia, o colapso climático, a guerra nuclear, o pássaro tenebroso. Dança frenética em que mitos se decompunham em meio aos escombros da humanidade. Nossas ossadas, máscaras, celulares, panelas e foguetes iam se transformando em resquícios de uma civilização que habitou um planeta de uma galáxia distante. Numa língua desconhecida foi contada essa história de um breve momento do universo. Havia fogo, terra, água, ar, seres de diversas espécies. Alguns muito sábios, quase imóveis se nutriam da luz do astro que regia os planetas. Outros se locomoviam e portavam em uma parte de sua estrutura, um equipamento que produzia pensamentos, ideias. Alimentavam-se dos seres quase imóveis e de outros que também se locomoviam, mas não possuíam esse equipamento tão complexo. Apenas despertei desse sonho, o celular estava do meu lado, e vi que estava atrasada para minha reunião: uma aula de teatro para crianças através das telas. Do meu lado um exemplar d`A Metamorfose de Kafka, convocava a barata que habitava o meu corpo a continuar sobrevivendo e narrando.

 




[1] Abordagem sinalizada na obra “Fogo no Mato- A Ciência Encantada das Macumbas” em que os autores dinamizam horizontes que legitimam o encantamento enquanto ciência. Assim o fazem, ao avistarem na complexa teia das religiosidades populares brasileiras de matriz africana (as macumbas) o elemento do encantamento e o seu potencial filosófico, que se desenvolve ao sinalizar formas plurais de tecer pensamentos.


[2] Saudação a Exu.


Referências

 

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo. Boitempo, 2007.

BARTHES, Roland. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino, Pedro de Souza e Rejane janowitzer. Rio de Janeiro: DIFEL,  2003.

CAMARGO, Gisele Guilhon Antunes. Sama - etnografia de uma dança sufi Florianópolis: Mosaico, 2002.

LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Tradução de Alfredo Veiga-Neto. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2015.

PAZ, Octávio. Os Filhos do Barro. Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos OrixásSão Paulo: Companhia das Letras, 2001.

RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula, 2019.

SALVADOR, Gabriela di Donato. “KALIGRAFIA”: O mito da deusa Kali revelado na dança a partir de estados alterados de consciência”.  Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da UNICAMP. Campinas, 2009.

SIMAS, Luiz Antonio. RUFINO, Luiz. Fogo no Mato: a Ciência Encantada das MacumbasRio de Janeiro: Mórula, 2018.

VERNANT, Jean-Pierre.  O Universo, os deuses, os homens. Tradução de Rosa Freire d´Aguilar. São Paulo: Cia das Letras, 2000.





Lígia Borges - Atriz, contadora de histórias, performer, professora e pesquisadora. Doutora em Artes Cênicas pela ECA-USP com a tese: “Encruzilhadas da contadora de histórias: veredas de tradição, tradução e ruptura”. É professora de teatro na EMIA (Escola Municipal de Iniciação Artística), referência no ensino de artes integradas para crianças. Coordenou o ateliê “Era uma Vez” no Instituto Eurofarma. Realiza também o ofício de contadora de histórias em SESCs, escolas, bibliotecas, livrarias e ONGs, trabalhando inclusive com formação de educadores nessa linguagem. Participou do desenvolvimento do Projeto História Viva das editoras Ática e Scipione. Foi encenadora e atriz do Núcleo Panóptico de Teatro, além de já ter trabalhado com o Teatro Dodecafônico, Ausgang, Cia. O Grito.. Como arte-educadora já ministrou oficinas em diversos projetos, com um enfoque metodológico no jogo teatral e nas performances narrativas. Como atriz participou de diversos espetáculos e oficinas em regiões diversas do Brasil, na América do Sul e Itália.