No décimo quinto andar, um conto de Vitória Gabriela

 por Vitória Gabriela __





Foto: Arman Khadangan



 “Tragam morfina*” – Rádios paulistanas de 74.


*A morfina é um fármaco narcótico de alto poder analgésico usada principalmente para aliviar dores intensas, agudas e crônicas.


30 de janeiro de 1974, 20h45 – Parelheiros, São Paulo – SP, BR.


Sofia havia pedido para Carla, a babá que retornasse mais cedo no dia seguinte, pois ela própria precisaria entrar mais cedo no serviço. Carla disse que tentaria e arqueou a sobrancelha direita enquanto dava uma quase-certeza, mas lembrou a Sofia de que já ficava até muito tarde com o menino, e que era bom mesmo dessa vez ela chegar antes das 19h. Sofia assentiu como assentiu ao chefe. Tudo pelos encaixes aos conformes (mesmo sendo mutável essa verdade da concordância).

Naquela noite, Sofia separou mais uma salsicha para a marmita pois sabia que ia acabar saindo no mesmo horário de sempre, independentemente de ter ou não chego mais cedo. Colocou uma garrafinha de água para gelar no pouco espaço que restava no freezer cheio não de carne, mas de gelo. Deu janta ao menino, a de sempre: arroz, feijão, batata, cenoura, beterraba, batatinha e carne moída. Tudo amassado fazia o menino vibrar de alegria. E então foram ler uma história, mas acabaram dormindo antes da terceira paginazinha.


Primeiro dia de fevereiro do ano de 1974.


Ás 4h30 Sofia já havia vestido metade da roupa do dia: uma camiseta estampada com flores coloridas e uma calça que o jeans era justo nas coxas, porém abria após passar do joelho, como se sorrisse para os sapatos, como se sorrisse para as ruas. Queria poder modelar seus dias como uma boca-de-sino, pela parte justa estava passando, queria só ter certeza que haveria a parte do alívio, do sorriso. Sua animação para a vida ainda estava adormecida, mas se lembrava sempre do que sua mãe dizia “Se há vida, há motivos”. Arrumou a criança antes de terminar de se arrumar, deu-lhe banho e desejou um ótimo dia enquanto paralelamente pedia para que ele respeitasse Carla. 

Quando deu 5h10 Sofia já não podia mais esperar por Carla. Irritada e desnorteada, pegou o menino e algumas coisas para entretê-lo no trabalho. Não sabendo o que falariam, foi durante todo o caminho pensando em um espaço para, pelo menos tentar, escondê-lo.


Bela Vista, São Paulo. – SP, BR.


Seis da matina e como o sol, a mãe subia. Ocupava o elevador com duas mochilas que imitavam perfeitamente seu estado, sendo também mãe e filha. Mochila e mochilinha. A criança riu quando ela o atentou a isso. Chegando no andar designado, suspirou de alívio por ter sido a primeira e cochichou para o pequeno que ele devia fazer silêncio porque era uma brincadeira muito importante, brincadeira que ele venceria se saísse dali sem ninguém o ver. Colocou uma coberta no chão do quartinho entre os inúmeros produtos que impregnavam o local com o cheiro forte. Espalhou brinquedos entre as pequenas pernas e reforçou o pedido de silêncio, avisou que voltaria sempre e que ele não chorasse ou gritasse pois ‘quando menos esperasse, ela estaria ali’.


Sofia acabou contando para algumas das colegas, pois elas também precisavam acessar o cômodo, o que confundiu o menino, mas elas sempre se identificavam como aliadas. Tudo ocorria relativamente bem (se não levar em conta a constante tensão). Limpavam os andares e iam subindo com o menino de quartinho em quartinho, de carrinho em carrinho. Até que 15 para ás 9 escutando um barulho externo e estranho, a criança se engasgou com o leite que uma aliada havia esquentado. Sofia havia aprendido técnicas com uma antiga patroa médica então fez tudo como conseguia lembrar. Quando a criança golfou, Sofia ouviu gritos e a criança chorou. Assustada, Sofia deixou cair algumas lágrimas. O pânico se alastrava e aos poucos uma fumaça invadia o espaço, as aliadas se separaram e Sofia secando as lágrimas entendia o motivo do caos.


Tentando centralizar os pensamentos, pegou apenas sua carteira recheada com documentos seus e os do bebê, colocou no bolso traseiro da calça folgada do uniforme enquanto agarrava a criança de 18 meses, e ia em direção as escadas para sair do edifício. Infelizmente, as fumaças já haviam engolido as escadas, o fogo estava de boca aberta faminto para engolir vidas. Sofia havia visto pessoas correndo para o elevador e então também tentou, mas este não subiu de volta para regatá-los. “Caminho para a morte”, Sofia pensou, porém concluiu seus pensamentos com Salmo 23:4 “Ainda que eu ande...” A criança chorava e gritava assustada em seus braços representando os dois.

 

Sofia voltou para o quartinho com o menino e o viu ainda intocado pelo fogo, por isso pensou se ficava ali e esperava seu fim, mas não podia fazer assim com seu bebê, tirar sua chance de viver. Seria injusto se fizesse sem lutar. Olhou pela janela do escritório que rodeava esses espacinhos e teve a impressão de que a cidade inteira esperava por ela. Multidões e multidões abaixo. Pensou acelerado em como os dias estavam prestes a mudar, em quantas noites desejou ter pessoas a sua espera como agora, curiosas pelo seu bem-estar. 


A fumaça estava tomando conta, o fogo faminto comendo o edifício. Entre tosses, Sofia decidiu usar uma das canetas Crefisul que assinavam coisas tão importantes, para escrever um bilhete que a importância não poderia ser medida.

“Estou aberta ao fim se nele houver alguma chance para você. Espero que ao crescer pense pelo lado bom, pense que puderam, ao menos, me velar. O que não aconteceria se eu ficasse aqui, esperando e sem saída além da morte sufocante. Haveriam de me reconhecer pela arcada, como aconteceu com aquela nomeada como eu, em Paris, 1897. Enfim, você saberá do que eu falo. Faço isso por você e espero que se há alguma possibilidade de vida, que seu corpinho a agarre. Saiba que a intenção foi a mais nobre possível que nasceu de uma situação insalubre. Eu te amei imensamente e morro te amando em nome desse amor”

Escreveu e colocou na roupinha da criança enquanto olhava nos seus olhos uma última vez e o permita vê-la chorar. A criança já havia parado de chorar e apenas a tosse permanecia. Encarando a cidade que a aguardava, a cidade que mal a conhecia, pela primeira vez naquele dia, Sofia não pensou. Só se jogou.


Nos braços da mãe, que saltou para a morte no 15º andar, uma criança de um ano e meio foi salva em um dos episódios mais dramáticos do incidente. A multidão acompanhou o salto bem em frente ao prédio. O choro da criança, levada imediatamente ao Hospital das Clínicas, foi ouvido logo após o impacto da queda.” – Sobre o incêndio no edifício Joelma no dia 01/02/1974 em São Paulo.







Vitória Gabriela
(2002) é autora de Por osmose (Ed.fomento literário, 2022), cronista colunista na Escritor brasileiro, possui material disponibilizado on-line independentemente e também em diversas revistas e cias. Facilmente encontrada 'escrevendo em traços @vivoserispidos (instagram) de pintura'.
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