Trechos de Pelas Frestas, de Fernanda Germano

 por Divulgação__









Sobre a obra


Yara Fers (escritora e editora):


“Aqui, entra-se pelas frestas na vida de uma menina, que pela brutalidade do mundo se faz mulher, se faz mãe, mas ainda busca o significado de ser gente. É pelas frestas do barraco em chamas que adentramos sua casa. Pelas frestas de suas partes íntimas negras vemos nascer seu bebê. Pelas frestas das vitrines vemos seu olhar lá fora, catando latinhas, dormindo nas ruas. Nossos olhares leitores escorrem frestas adentro dessa vida marginalizada, que cata no lixo restos de histórias, tentando compor a sua. E então não estamos mais no limite da fresta. Nosso olho já se alastrou como fogo, como enchente, na vida dessa mulher. Neste ponto, caminhamos com ela em suas andanças e sofremos cada uma de suas muitas perdas. Descobrindo que mesmo quem tem muito pouco ainda pode perder o que tem. Ou perder-se. Quem lá atrás entrou pela fresta do livro, acompanhou essas perdas, percebe nesses restos uma imensidão. “Toda vez que morre uma mulher, outras renascem”, reafirma a narrativa algumas vezes. Porque das perdas e restos, há a teimosia de existir, de resistir, como sina. Se o fogo nasce da fagulha e o olhar se inicia na fresta, em poucos parágrafos essa narrativa se alastra, arreganha as aberturas, queima os olhos. E não saímos ilesos.”



Trechos da obra


Trecho 1



“Nossas vidas eram uma diáspora. E diáspora não é lar: é constante perda e falta, que nos obriga a lutar para que não invadam nossa única casa - a que levamos por dentro. 

E, quando as paredes não mais aguentam o peso que se impõe sobre elas, elas racham, deixam pequenas frestas, pequenos feixes de luz a entrarem, talvez, apenas por pena da tristeza que o escuro faz em nós, que não temos casa. A cidade me sentia no meu peso e, por isso, fazia rachar as construções que eu frequentava - até mesmo aquelas que somente existiam dentro de mim. Como se voltasse ao barraco, onde as frestas das madeiras me permitiam olhar limitante - mas ainda assim um olhar -, o centro colocava-me atrás das rachaduras, atrás de qualquer fila, atrás da importância humana da cidade. Queria ver se eu perdia o olhar; se eu, submissa, cessava o meu desejo e lhe servisse apenas em calada ação. Mas eu, em mim, desenvolvia muito  barulho.”




Trecho 2



“E você? Tem filho?, me perguntara.

Eu tinha uma, mas perdi.

Eu perdi alguns também, de outros eu provoquei a perda. Todos meninas, ainda dentro de mim… Uma tristeza, mas foi um alívio pra mim.

Acenei a cabeça.

A gente passa muito tempo preocupada com filho. Isso é uma coisa só de mulher. Parece que a gente gosta de sofrer pelos desconhecidos… Já pensou nisso? Toda a nossa vida passa a rodar em volta de uma pessoa que sai da gente e que a gente nunca viu antes, não sabe nem a cara, não sabe que voz vai ter, do que vai gostar… E a gente deixa de fazer as coisas pra gente pra fazer pra eles. Sofre, preocupa. Já pensou nisso?”




Trecho 3



“Sonhei que voltava ao barraco.

Minha mãe, estirada na terra, era outra; porque o céu não podia esperar. Procurava a minha boneca descabelada, sem a encontrar tão fácil. Ela era careca: assim ficava mais distinta das outras, de cabelos afro tão indesejados quanto invejáveis. Supunha que havia perdido o juízo porque haviam apagado as luzes da comunidade. Eu poderia até achar que estar só era lindo. Mas o barraco cheirava aos corações desesperados e eu estava cansada de lidar com tanta quebra, com tanto caco. De certo modo, achava importante deixar um rastro de destruição por onde eu passava. Essa era a única maneira de me verem por inteiro e não pelas frestas de mim. Os barracos estavam todos em silêncio, em luto pelas madeiras queimadas. Eu andava em sonambulismo, a temer pisotear os membros da minha mãe, espalhados pelo chão. Cinzas menores implicavam com minhas narinas, a quererem adentrá-las e entupi-las - talvez, para que me matassem mais depressa. Mas eu recusava o falecimento. De estômago fundo e peito vazio, sentia-me mal. Minha avó vivia e me acenava de longe. Sentia seu cheiro de alecrim colhido do pé, que, por milagre, substituía o odor de boca de bueiro que era habitual ao barraco. Caía uma chuva fina, como desculpa pelo tanto fogo que nos destruíra. Vovó cantava um ninar para Eva, que se amolengava em seus braços. A minha casa não é casa, é um barraco; eu não tenho lar, eu tenho é asco, ela sussurrava. A porta de ferro enferrujara com o tempo e ficava em um talvez, entre aberta e cerrada, para combinar com os olhos da minha mãe. As madeiras das nossas paredes eram frestas menores que os buracos que haviam entre si. Delas, eu via o mundo: pura queima.”





Fernanda Germano
é escritora e estudante de Medicina da Unicamp. Teve sua estreia com o romance “Cegueiras na Calçada”, publicado pela Editora Voz de Mulher (2022), foi vencedora do Concurso Literário “Escritos da Quarentena” do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL-Unicamp) e possui diversos textos publicados em antologias e revistas. Faz parte do Coletivo Escreviventes e desenvolve sua voz para garanti-la a outras também.