por Davison Souza__
Vendo
a liberdade de meu corpo, o homem corpo-rígido tentou endurecer o meu,
acorrentou-o para que não mais dançasse. Prendendo meu corpo-livre e me levando
da terra-mãe, o transportou pela calunga rumo ao desconhecido. No balanço do
mar, meu corpo amontoado a outros corpos da cor da noite, não se movimentava mais,
não se podia dançar. Angustiados, muitos companheiros decidiram optar pela
liberdade e foram abraçados pelo mar, tornaram-se livres.
Quando
pisei pela primeira vez na terra Pindorama, senti o vento, depois de longos
dias, porém, meu corpo-cansado estava preso em correntes de ferro, o peso delas
tirava a leveza do meu corpo. Me forçaram a servir o homem corpo-rígido,
trataram meu corpo como mercadoria, vendendo-o nas praças públicas. Contudo, a
lembrança do meu corpo livre ainda pulsava a cada batida do meu coração,
entoando como um tambor. Nas fazendas, meu corpo foi açoitado pelo desumano
senhor que viu nele o resquício da liberdade que a ele pertencia.
Entretanto,
corpo-livre não se coloniza. Em terras estranhas, a resistência se fez morada,
meu corpo encontrou outros corpos dissidentes, a quebra das correntes e o fogo
abrasador foram nossa canção da liberdade. Nas encruzilhadas da mata fechada,
nossos corpos-rupturas formaram quilombos, espaço-tempo de resistência frente
ao sistema de dominação de corpos.
No
quilombo, nosso corpo podia dançar. Assim como na terra-mãe, organizamos nosso
modo de ver e estar no mundo. Dançamos e festejamos a liberdade de um corpo que
podia finalmente ser quem é. “Negro é a raiz da liberdade” era o coro que se
podia ouvir mata adentro.
Tempos depois, disseram que uma lei
aboliu nossos corpos, naquele tempo muitos irmãos e irmãs ainda viviam presas
em cativeiro. Contudo, as correntes de ferro foram substituídas pelas correntes
do pensamento. A escola foi a ferramenta pensada para ensinar aos nossos corpos que eles não podiam
dançar. Lá se vangloriava que nesta terra todas as pessoas são livres, contudo,
que liberdade tem o corpo que não pode dançar?
A
resistência foi a arma criada para que a liberdade pudesse habitar nossos
corpos, em cada lugar desse extenso território, seja nos quilombos, nas favelas
ou na beira dos rios. Em qualquer espaço-tempo em que o corpo-livre habite, ele
dança. Nos reunimos em roda – nela todo mundo dança, todo mundo fala – e o
tambor é nosso guia, o som ecoado pela batida movimentava nossos corpos, somos
livres. Nesse movimento juntaram-se ao tambor outras linguagens, como o
cavaquinho, banjo, pandeiro, cuíca e o ganzá, harmonicamente todos têm o poder
de conceder ao corpo a liberdade de poder dançar.
Hoje,
em uma roda de samba, no meio da favela, em um Fundo de Quintal, meu
corpo-memória grita:
Mas iremos achar o tom
Um acorde com lindo som
E fazer com que fique bom
Outra vez o nosso cantar
E a gente vai se feliz
Olha nós outra vez no ar
O show tem que continuar
E
com a liberdade de quem dança, meu corpo suado se movimenta acompanhando a
marcação do tantã, um sorriso negro se estende no meu rosto e a memória um
pouco fragmentada se refaz como um quebra-cabeças, meu eu então proclama: o corpo
que samba é um corpo livre.