Trechos da obra Casa Voadora, de Luiz Otavio de Santi

 por Luiz Otavio de Santi__








Trecho 1

Casa Voadora é um texto livre, nômade, transversal, escrito em sua maior parte em confinamento e, depois, mais solto. Andarilho, sem definição única, diarista, pode ser um tipo de casario, uma vila, construída com as mãos. Dentro desta Nave-Cidade-Bairro-Casa, há vários tipos de habitações, de formas, de desigualdades, de arquitetura e de corpos. Ao mesmo tempo que algumas casas possam parecer dissonantes uma da outra, ou carentes de um estilo único entre si, seus alicerces têm amplitude e capilaridade para estruturar uma grande teia. Uso o termo “casa” para nomear os capítulos e para adjetivar estes corpos vivos, nossas lentes para o mundo, o mundo particular de cada um e as casas que habitamos, naturais ou não. A paisagem literária que tento fazer é variada, uma mais poética, outra mais ensaística. Algumas mais técnicas, outras mais documentais. Tudo aqui sai de minha experiência de liberdade que tenho com a literatura, para exercitá-la como a sinto. Quero falar dos caminhos que faço para ganhar a vida, ajudar os que sofrem e exercitar meus pensamentos e ações. Sinto que vivi com intensidade uma vida heterogênea, talvez mais do que uma vida. Entrego-lhe este tecido de pele feito com amor à arte, ao conhecimento, e especialmente à vida que compartilho com você. Uma estética de sobrevivência.

Ao fim geral desta escrita, eu me reencontrei com um filme adorável, Caro Diário, de Nanni Moretti. Se tivesse condições de fazer um filme como este, eu o faria agora. Acho que há algo de semelhante por escrito. 


Trecho 2

CASA DE FOGO

O tiro foi certeiro, entrou pelo topo da cabeça e a pequena bala do revólver 22 alojou-se no centro do cérebro dele. Atravessou tudo, de cima a baixo, lobo frontal, tálamo, hipotálamo, e parou ali na hipófise. Um estrago mortal. Uma outra bala não foi irmã dessa. Alojou-se no bolso da calça jeans perto da virilha. Não entrou, deu chabu. Um tiro no alvo, outro cuspido, encrencado, travado, quase um festim. Se os dois tivessem sido assim, a história teria sido outra. Poderia ter vários outros desfechos melhores do que o consumado. Nunca pude conferir o que de fato ocorreu na cena. Minha imaginação desenha assim: era uma tocaia, a besta se escondeu numa moita ao lado da estrada, talvez até dentro de um mata-burro. A vítima desceu do cavalo para abrir a porteira quando o alucinado deu a voz de rendição. Devem ter se estranhado, Mário tentou se defender, aí veio a primeira bala na calça. Mário deve ter se dobrado para frente num gesto automático de defesa e expôs o topo da cabeça a Antônio. Daí, mais um passo adiante, a segunda veio à queima-roupa, chamuscando o cabelo. O moço tinha só 25 anos de idade, o assassino, uns 35, no máximo.

Mário aguentou uma semana em coma, vegetando. A esperança muitas vezes quer ser ingênua. Pensávamos, “ele vai acordar, vai ter sequelas terríveis, mas ele vai voltar”. O crime foi num 28 de dezembro de 1980, o falecimento dia 3 de janeiro de 1981, dia do aniversário de nossa mãe. A morte de meu irmão Mário Augusto mudou o rumo de várias famílias, a central delas, a nossa, evidentemente. Uma mudança de fazer a vida ficar sem sentido por um tempo.

Trecho 3

Casa de sobrevivência – minha casa – o transtorno obsessivo compulsivo, o TOC

Perigo perigo perigo perigo perigo perigo perigo perigo perigo Perigo perigo perigo perigo perigo perigo perigo perigo perigo Perigo perigo perigo perigo perigo perigo perigo perigo perigo Perigo perigo perigo perigo perigo perigo perigo perigo perigo Perigo perigo perigo perigo perigo perigo perigo perigo perigo Perigo perigo perigo perigo perigo perigo perigo perigo perigo

Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dú- vida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvi- da e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e Medo Dúvida e medo.

O percurso é dúvida, a incerteza é medo, o perigo é medula. O vale do eco infinito.
Busca-se ajuda! Quero ajuda!

Isso tudo é longo e permanente, está em tudo e em mim, atraves- sa-me, entranha-me, sou eu, num modo convencional de dizer eu. Pois sinto, sei, conheço, mas não posso dizer eu, porque do eu somos muitos. Inclusive meus antepassados de quem herdei, vida que levo e faço, minha epigenética, que é a expressão viva da genética, o aqui e agora e o futuro. Sou um bicho neocortical, sígnico, linguístico, sonhador, uma casa viva de portas e janelas abertas, um aglomerado em pó de estrelas. E em mim cabe a dúvida, existe sempre a dúvida. No plural, elas são as minhas sombras e meus caminhos. Um ciclo muito eficiente, ancestralmente eficiente, reptilianamente preparado para causar exatamente aquilo que se quer evitar. O medo nos protege, faz parte dos instintos de proteção, mas quando é falso e demasiado, patológico, causa, com as sensações e o desconhecimento, mais medo ainda. O medo traz a dúvida obsessiva que traz a sensação interminável de perigo iminente. O ser tocado busca ajuda o tempo inteiro para aliviar seus sintomas e o caminho é um labirinto. É assim que se sente encurralada uma pessoa com TOC – transtorno obsessivo compulsivo, e não reconhece o porquê, não sabe o que está acontecendo. Depois de se ligar neste movimento, de chegar a um certo estágio de consciência e de conhecimento do fato, o ciclo pode perder força, a obsessão diminui de importância. Já se sabe o nome no inimigo, sabe-se onde ele está. A guerra fica mais simétrica e, com paciência, interrompida, com alguma paz. Isso para alguns sortudos e mais, digamos, preparados.

Fui diagnosticado com esta desordem neuropsíquica somente em 2016, por um competente especialista e sua equipe do Hospital das Clínicas, da Universidade de São Paulo (USP). Acho o termo em inglês mais interessante – OCD, obsessive compulsive disorder. Assim, desse jeito, ele parece descrever mais justamente o que realmente acontece fisicamente, uma desordem nos pensamentos e, consequentemente, no corpo. Mas não podemos deixar de lado um campo maior do que este, de pouco entendimento prático ainda para médicos, que são o das doenças psicossomáticas. Depois de mais de trinta e seis anos com sintomas leves, aumentados com o tempo, sem alguma hipótese e definição para mim, com o fato de conhecer seu mecanismo, sua forma, seu cheiro, sua cara, a vida começou a melhorar. Quinze anos é o tempo médio de tomada de consciência de um diagnóstico de TOC. Quando não sabemos o que está acontecendo, onde estamos, para onde vamos, perdidos e sem rumo, tudo fica muito pior. 








Luiz Otavio de Santi -
nasceu em 1961 na cidade de São Paulo. Graduou-se em Comunicação Social, Cinema. É Especialista em Língua Portuguesa. Mestre em Comunicação e Semiótica, PUC-SP. Doutor em Psicologia Social, USP. Foi professor universitário por vários anos. É acupunturista, eutonista (eutonia), cineasta, escritor e poeta