Trechos do livro de contos Terebentina, de Alexandre Gil França

 por Alexandre Gil França___




          
TRECHOS SELECIONADOS


DO CONTO “JÉSSICA”


TRECHO 01 – CONTO “JÉSSICA”


(...) Pega um ônibus para Perdizes. Escorre pelo bairro do Bixiga. O gosto de pastel se espalha suculento, tortuoso. O vinagrete explode sabores noturnos em sua boca. Invade a janela a noite mal dormida, passa pelos ouvidos, aquece a sonoridade da madrugada que está sempre por vir. As bandeirinhas da rua Clélia, os feirantes gritando promoções, os atores do teatro Sérgio Cardoso rindo escandalosos entre as luzes dos faróis. Um casal se confunde com o muro, ejaculam brasas invisíveis por dentro do boné e de um moletom amarrado na cintura. Plumas se evolam entre os trabalhadores. Garrafas derramam cerveja em copos de plástico. Na prainha paulista, os ternos conversam e vendem o planeta Terra inteiro. Estamos longe… em direção ao Butantã? Durmo e estou dançando em Londres. Sozinha. Como sempre fui. Acordo na Benedito Calixto. Um clarinetista de chapéu pisca um olho. E depois o outro. E toca chorinhos. Músicas antigas entre couros, charutos, fumaças. As mulheres se alimentam e alimentam seus filhos. Uma fileira de mães amamentando. Suas crias são bonecas perfeitas e brilhantes. Os olhos: duas bolas de gude polidas. Seriam brinquedos de Deus? Ah, eu consegui! Eu consegui! Moça? 

Um sorumbático “o quê” ressoa sem contorno. 

Tem gente? 

Não. 

Que amadora: deveria ter sentado no corredor. Agora um estranho vai lhe encurralar na janela até a hora de descer. Hoje ela merece não ser tocada. Pelo menos hoje. 


TRECHO 02 – CONTO “JÉSSICA”

Calor, né. Silêncio. Você é bailarina? Moço, não tô pra conversa. Silêncio. O ônibus faz uma curva, de modo que a coxa direita do rapaz transmite as ondas eletromagnéticas para a coxa esquerda de Jéssica. Sua bochecha esquerda lhe devolve um espasmo. Ao fundo, uma senhora espirra. E depois tosse de maneira seca. A ventarola do teto começa a bater. Insistentemente. A cada tranco, Jéssica sentia nas nádegas a precariedade do veículo público. Na verdade, tudo parecia mais precário com a presença do jovem fantasiado de alguma coisa. Sua saliva tencionava encostar em suas córneas. Seu hálito roçava intimamente na língua. Quem o vê de longe não o distinguiria de um animal indefeso, mas Jéssica enxerga um andarilho da noite em busca de ração. Aquelas roupas…. Teria saído de um circo itinerante? Estaria fantasiado do quê, meu Deus? 

Perguntei por causa do coque. Silêncio. E das sapatilhas também. Esta daqui só pode ser sua. Entrega a sapatilha para Jéssica. Acho que você deixou cair enquanto dormia. Obrigada. Estende a mão. Prazer, me chamo Junior. Jéssica. Se cumprimentam.

Junior – Minha irmã foi bailarina. (Silêncio) Sua sapatilha me lembrou a minha irmã. (Silêncio) As bailarinas não são muito de conversa, né. Quer dizer, elas conversam bastante entre elas, mas com a gente, os reles mortais, elas não estão nem aí. (Silêncio) Desculpe. É que hoje foi foda. Fiz um teste que deu tudo errado. (Silêncio. Mais silêncio) Você não está nem aí, né. (Silêncio) O que a gente mais quer é que o mundo nos olhe com cuidado, mas o que acontece é o mundo criando pernas para pisar na nossa cara. Para espremer a nossa cara, até as lágrimas saírem lentas. (Silêncio) Desculpe. É que hoje foi foda. 

Jéssica – Estou com uma dor de cabeça… 

(Silêncio)

Junior (Começa a rir de si para si mesmo) – Heheheh, e olha só com o que acabei me metendo: tarô!

Silêncio suficiente para uma ideia; para o início da chuva; para o fim da tempestade.

Jéssica – Tarô? (Pausa) Moço, me desculpe, mas você sabe ler tarô?

O ônibus se transforma num avião jumbo. Os dois estão na primeira classe. Duas taças de champanhe são servidas.

Junior (Responde quase sem querer, quase em forma de pergunta) – Sei? 

Jéssica – E você está com o baralho aí? 

Ela sorri como se, de uma hora para outra, a bacia de um rio voltasse a encher.

Eu entrego um baralho pra ele.

Eu – Toma. 

Junior – Obrigado.

Jéssica – Você pode tirar as cartas pra mim?

Yo Yo Ma, posicionado no começo da cabine, toca a Suíte n.º 1 de Bach em sol maior.

Junior – Claro. 

Jéssica – Ai, que ótimo!

Junior – Qual é a sua pergunta?

Silêncio duvidoso.

Jéssica – Eu quero saber se eu vou ser feliz em Londres. Se terei sucesso por lá.

DO CONTO “ELANA”


TRECHO 01 – CONTO “ELANA”


(...)

Hoje Elana vai ao seu primeiro encontro amoroso. Dirce, sua amiga há quarenta e cinco anos, diz para que Elana utilize o batom amadeirado de sua coleção. Toma, é seu, Elana. Mas Elana é sincera em dizer que odeia aquela cor, que lembra a cor de uma lepidóptera, ou, pior, de uma mariposa-bruxa. Não, jamais devemos parecer uma bruxa em nosso primeiro encontro; é capaz do cara apagar as luzes todas para voarmos fora dali. Dirce conta que possui um outro de cor vermelha, mas que acha um clichê utilizá-lo neste tipo de situação “amorosa”. Elana logo a corrige, pois não se trata ainda de um encontro amoroso, o ambiente, é possível, bem possível, talvez seja um ambiente romântico, com uma canção de elevador ao fundo, cuja letra nos conte algumas verdades, com vinho e comidas exóticas as quais Elana possa abandonar peremptoriamente, como um cidadão abandonando uma cidade – não: o ambiente é romântico apenas em hipótese. Nada pode nos dizer que um espaço fechado com mesas e panos brancos sobre a mesa e marcas redondas de vinho sobre os panos (simetricamente redondas e vermelhas e escuras e cortantes como tatuagens inacabadas) seja um espaço romântico feito para o romantismo arquitetado por Eros, o deus do amor – não. Poderia o ar-condicionado estar estragado, poderia ter um cabelo grosso sobre a comida, sobre a entrada, no dorso da manteiga, deslizando sobre a superfície amarela do retângulo, misturada à posta escabeche – não. Nada disso é romântico, Dirce, nada disso me impressiona, nem mesmo o ser humano e suas boas intenções românticas irão me impelir a usar esse batom vermelho e essas rosas boiando em meu intestino. Não há nada boiando em seu intestino, Dirce acaricia a cabeça da amiga. Elas sorriem em conluio. Elana fecha os olhos e diz não querer enxergar mais nada por pelo menos um intervalo comercial. Atordoada (mas não menos disposta), Dirce suspira e pede um sorvete de creme com calda de chocolate. Ela sabe que para Elana é difícil abandonar uma coisa (o sorvete) ou outra (a calda). Nossa especialista em lepidópteras toma a substância homogênea de olhos fechados. 


DO CONTO “CÍNTIA”


TRECHO 01 – CONTO “CÍNTIA”


(...)


Cíntia (Cantando) – “Traiçoeira e vulgar, sou sem nome e sem lar: sou aquela. Eu sou filha da rua, eu sou cria da sua costela. Sou bandida, sou solta na vida e sob medida pros carinhos seus. (Agora, dá uma piscadinha para Noronha, que se esvai feito farinha) Meu amigo, se ajeite comigo e dê graças a Deus.”

O bar, de novo, explode em aplausos.

Mais aplausos.

Mais e mais.

Bebidas são distribuídas como a queda de um enorme dominó. 

Pessoas tiram suas roupas.

Se abraçam coletivamente. 

Se beijam.

Têm filhos.

Renascem em outras gerações.

Sobrevoam o telhado do bar.

Se esquecem que já passam das cinco.

Pausa. 

Pedro resolve afinar o instrumento.

Pausa. 

Ele demora anos. Séculos. Cíntia está cada vez mais idosa. Agora, de bengalas, tosse, não consegue mais fumar seu habitual Free Azul. A mãe se foi. Assim como Noronha, Nelsinho e Leandro. Sobraram ela e Pedro, em um bar vazio.

Cíntia (Cantando à capela)“As suas mãos onde estão? Onde está o seu carinho? Onde está você?”

Mãos trêmulas acendem um cigarro na bituca de um outro, ajeitam o batom esmaecido, depositam cerveja em um copo, pedem mais para o garçom, acariciam os cabelos de Pedro, acariciam os pelos de um cachorro, passeiam por um bosque noturno, deslizam por um buquê de rosas, lançam beijos à plateia do teatro, rezam para que termine o batente, pescam um cartão em uma bolsa entupida, lançam maldições a uma vida incompleta, acenam para si, dão tchau para si, abençoam a si, em uma piada litúrgica feita por quem, há muito, perdeu a fé em qualquer coisa. 

Pedro, finalmente, começa os acordes de “Bom dia, tristeza”, de Adoniran Barbosa e Vinicius de Moraes.


*Adquira “Terebentina” no site da editora Urutau: https://editoraurutau.com/titulo/terebentina  







Alexandre Gil França
nasceu em Curitiba, em 1982. Já trabalhou com música, poesia e teatro. Publicou, em 2015, seu primeiro romance, Arquitetura do Mofo (Selo Encrenca/ Arte e Letra). Atualmente, edita junto com a poeta Iamni a Mathilda Revista Literária. É mestre em Artes Cênicas pela USP e doutorando em Teoria e História Literária pela Unicamp.