A Mãe Naturada, poema de Adriane Garcia

 por Adriane Garcia__



              
A MÃE NATURADA

 

Gosto e não gosto de mamãe

Gosto da parte em que eu não tinha consciência

De minha inconsciência

A partir daí

Comecei a desgostar

 

Desgosto já sabendo que desgostava

Quando gostava

Mas não sabia

 

Que era recíproco

 

 

.

 

Hoje amanheci com vontade imensa

De cortar o telefone de mamãe

Que pago há anos

Sem que ela fale comigo

Sem que seja avó

De minhas filhas

 

Ainda não o fiz porque tenho um ego

Que não aprecia ninharias

(o que os outros vão pensar?)

Mas eu adoraria parar de competir

Neste concurso de Melhor Pessoa

 

 

.

 

 

Mamãe me ensinou das melhores

Lições de sobrevivência:

Ser falsa

Dividir para governar

Esconder vis sentimentos

Com as capas mais nobres

(ela tinha preferência pelas de mãe-mártir

e heroína inabalável)

 

Essas lições ela me deu em turma

Somos seis irmãos

Da primeira falava mal com o terceiro

Do terceiro falava mal com a segunda

Da segunda com a sexta

Da sexta com o quarto

E assim por adiante, vocês já entenderam

Claro que entra o quinto

(ah, eu sou a primeira)

Não vou desfiar aqui anos de treinamento

 

Mamãe não tinha papas na língua

Para nos apontar defeitos

E ensinou-nos que podíamos nos humilhar 

Uns aos outros

Rindo

Rimos muito

Era uma casa divertida

 

Mamãe nos ensinou a seduzir

Mas nunca tão bem quanto ela



.

 

 

Papai só valia um vintém

Mas mamãe era uma grande pintora

E pintou um quadro

Em que ele ficava abaixo de zero

 

 

.

 

 

Esse meu astigmatismo

É por ter convivido tanto tempo

Diante da mais pura divina e alta luz

De mamãe

(comprei óculos)

 

 

.

 

 

Depois tive um insight

Destes que nos desmascaram

Terrivelmente:

Que mantenho os pagamentos do

Telefone de mamãe

Para manter uma

Ligação

Com ela

 

.

 

Uma vez em um poema eu afirmei

Que não gostava de mamãe

E foi duro admitir

Que ainda era resistência em mim

Não falar em ódio

Que odeio mamãe

 

Uma mãe suficientemente boa

Que me fez chegar até aqui

Porque me alimentou e cobriu

E, filha ingrata,

Eu nem me submeti à sua chibata

Para sempre.

 





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Adriane Garcia
poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você  (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé ( Caos e Letras, 2023)