Cesárea, um conto de P. R. Schneider

 por  P. R. Schneider__




Foto: John Lozano


Brincando sozinho com as pedrinhas do quintal eu me via tentando entender de onde elas vieram e logo cheguei a conclusão de que não sabia; aí eu inventava a origem e depois destino que elas poderiam ter. Me questionava ainda mais sobre a origem da chuva e das gotículas que davam um contorno translúcido aos meus olhos. Olhos de obsidiana, me lembro de uma voz esmaecida do passado dizendo-me algo assim. Olhos que nada revelam sem que afogue o espectador.


Na infantilidade alheia do mundo, eu dava nome ao desconhecido e lhe concedia o fascínio da história que eu inventava, mesmo assim, sempre me vinha a ilógica sensação de estar errado sobre tudo. Mas que importa? Naquele quintal eu era Deus. E Deus não duvida de si.


Segurava firme nas mãos o poder sobre as pedras, os caracóis, as plantas, as trilhas na terra úmida que fiz e principalmente – de modo ditatorial – sobre as formigas. As formigas eram minha pequena humanidade – o protótipo do que virá ou é –, fico pensando como elas enxergavam seu gigante-Deus comparado ao seu reduzido tamanho de formiga.  Elas têm esse privilégio: ver seus deuses. Segundo a ciência, as formigas são insetos que vivem em colônias. Na verdade, sempre as encarei como uma metáfora. Nunca me foi incômodo observá-las, ou por elas ser picado, tudo é seu destino de formiga, sua natureza; seria nosso destino apenas uma parte de nossa indeletável natureza? Que tipo de destino pode ter uma formiga senão estar junto das suas e fazer crescer sua colônia? Que curiosidade poderia ter do mundo? Mundo este que de tão imenso não a comporta.


Mas havia um domínio naquele meu pequeno universo. Algo infinitamente maior, imperando sobre minha divinação inventada. O pé de caju. Eu não possuía poder alguma frente d’Ele. Era mais imenso que eu, com a sua copa que escondia o céu, constantemente principiando entre a chuva e o sol. Sem saber ao certo o porquê, eu o adorava em silêncio, emudecido pela magnitude sobrenatural de uma árvore mais antiga que eu, pertencente aquele chão sustentado pelas suas raízes quilométricas; fazendo de cada grão uma digital irreconhecível do tempo, das pessoas sob e sobre aquele solo. Sua resina que escorria pelo tronco, eu moldava como palácios de âmbar para as formigas, não os cupins – nunca eles –, as formigas. Os cupins eu odiava o cheiro, nunca os dei origem, nem história, e sequer um destino. Exclui os cupins da gênese do meu mundo. 


 O mais absurdo de tudo é que eu não comia caju, eram azedos os que eu conseguia alcançar e os mais maduros caiam de podres; eu os dava às aves – eu dava-lhes esses cajus, com uma misericórdia meio reverência. 

Para os pássaros – sobre mim – eu nunca fora Deus. Eles sabiam voar, eu não. Como anjos que olhavam minha pequena pangeia de formigas, resina, pedras e caracóis. Uma fraude. 


Fui tomando a forma hercúlea – a carcaça –, que os homens tomam ao longo da vida e no passar dos anos fui deixando de frequentar o meu reino, esquecendo um universo inteiro à minha espera, devotado com minha falta e com o tempo que se contorcia rente aos galhos. E segui afastando-me de uma sobrenaturalidade maior que eu, um útero que pulsa entre aquelas raízes de cajueiro. 


Em muitos momentos olhei de relance o quintal atrás do portão: verdejante, terroso, idêntico a como eu o deixara. Nem mesmo os caracóis tinham saído de seu território que limitei com pedras para que estes não destruíssem os Reinos das Formigas das Raízes. Chorava por amor no batente da porta; a porta-portal que me oferecia o passado e que eu teimava em não bulir. 


Meu império reinava por si só, sem que fosse preciso um Deus. Conforme eu crescia, o quintal se apequenava, era possível ver os limites do mundo nos muros cobertos de clitórias. Passei a observar ainda mais disperso as formigas em seus reinos; os tais palácios de âmbar dobraram de tamanho e os cupins parasitaram o tronco do cajueiro, corroendo-o, tornando o Deus-cajueiro oco e ainda assim ele era capaz de me eclipsar. 


Quando eu for poeira, quero misturar-me as areias deste quintal e viver o mundo que criei. Na verdade, é mentira, eu não o criei. Tudo que há no quintal deriva do cajueiro, são suas raízes que cortam o chão, são suas folhas que tornam os raios de sol solúveis aquelas formigas, eu sou uma sombra apocalíptica que observa a pequenez bravia de suas existências. Uma criatura que, para no tempo de vida de uma formiga, têm extrema durabilidade.

 

Fui regressando timidamente ao quintal, com os olhos amiudados, ansiando pela resposta que poderia dar-me o contato com o cajueiro e suas sábias formigas. Desesperado pelo regresso imediato à outrora. Olhei como nunca o cajueiro, sua grandeza catedrática me desconcertou. Exigi respostas que apenas me foram respondidas com o sussurro das folhas verdejando, me dizendo o inaudível, aquilo que minha cognição humana é incapaz de assimilar.  Eu queria saber de onde viera a vida; uma pergunta inquieta, arrogante e afoita.


 Tem uma pequena abertura no tronco, aquela abertura que existia há anos e por onde a resina escorria para as formigas e seus palácios. Aquela fresta que excisei na árvore decepara algo… uma coisa que une todas as coisas. Uma parte vital do universo. Uma fresta indispensável que atravessa tudo.  O corte me remeteu à vagina, ao nascimento, à ideia de uma árvore-mãe. Aquilo que a cabala chama de árvore-da-vida. Aquele corte era um pórtico para um mundo-além. Então eu o transpus.

Queria ter nascido como todos nascem; pela vagina, o portal da Terra. Aquele lar estrangeiro de onde eclodem as almas deste mundo só; uma vazão inominável do corpo para o que é material, o dado nome do mundo: real. Sinto que não ter saído da vagina faz com que eu não tenha nascido. Então eu não nasci, uma criatura que não nascera. Assim são todos que não nasceram da forma natural? Não-nascidos? 


 Minha mãe não poderia ter me colocado no mundo da forma que a natureza espera, seria doloroso, perigoso, úmido. 


 Divino demais para um homem desprovido de alma. Me sinto embutido em uma dobra de carne que faz de mim nem gente e nem espírito, nem coisa alguma ou tal coisa. Somente algo indefinível. Quero ter a possibilidade de não falar sobre meu nascimento, mas, minha cabeça não se deixa calar, exigindo do meu tato com o verso uma forma de narrar aquilo que eu defino como triz. O triz do nascimento; a gestação ela é mais concreta, é o corpo tomando forma, mas a vontade invisível do nascer é diferente, faz o corpo liberta-se e ali há o triz. Pensar em nascer faz de mim uma criatura completamente adversa à ideia da morte, e eu não tenho medo da morte, é diferente disso, eu tenho é ânsia pelo nascer. 


 Olhando para fora do que me prende - as reticências da vida que não levam a lugar algum -, um corpo sem corpo, fixado na palavra espírito, por entre a matéria e o nada. Nesta pequena fissura sem batismo, esquecida pela vontade das horas, pálida e terrena. 


É como encarar o espelho e tentar desvendar o que existe no limite entre eu e o reflexo; tentando alcançar aquilo que não se exprime, o intocável. Finjo que sei das coisas por apenas não aceitar de forma crédula a ignorância do lapso do triz. A ínfima força com a magnitude capaz de dar vida a morte e vice e versa. Essa seja, porém a brincadeira sem graça que o universo nos faz: nunca sabermos o que é o triz. Se o descobríssemos, iríamos definí-lo e a alma fingiria quietude. Seria um trauma irreparável, uma descoberta embutida no caos, como olhos que se dão conta da noite. Quando me volto para o universo… – e eu não sei se nascer é o próximo passo do agora ou se a morte é o nascer para que o retorno deixe de ser inevitável. O que eu sinto é o pavor primal que o meu corpo sentira a poucos segundos do triz, o pavor do que está logo ali…


Percebi que não havia mais saída daquela fresta, me engondei no vazio e nas teias que tecem o mundo, fui parar nas paredes da memória, como um quadro semi-iluminado. Depois de olhar meu corpo ser consumido pelos vermes, me percebi na imensidão incalculável do quintal, com aquele cajueiro ainda mais imenso sobre mim. Sentia-me leve, os grãos de areia eram agora pedras, minhas patas, minhas antenas, meu palácio de âmbar.




P. R. SCHNEIDER
Eu existo. Isso é o suficiente.