Exaltação, um conto de Adriano Espíndola Santos

por Adriano Espíndola Santos__


Foto: Gunnar Ridderström


Estava ansioso para saber o que vovó diria sobre Augusto. A qualquer momento isso poderia acontecer. Ela o ama como a um filho. Claro, o menino foi criado por ela depois da debandada da mãe, tia Gerusa, para as terras do Sul. Augusto me confidenciou que não aguentava mais esconder o que já estava a olhos vistos. Ele foi a base para tantas libertações… Augusto, ou “Gutinho”, para os mais chegados, era um menino quieto, caseiro, até que tomou corpo e resolveu trabalhar à noite. Primeiro, foi garçom no bar da Esquina Flash – do tipo outside –, um ponto lotado de boys. Era a oportunidade para se tornar a pessoa que devia ser. Eu, mais novo, acompanhava as suas empreitadas de longe – não tão longe assim –, entendendo que logo, logo, chegaria a minha vez. Eu só tinha treze anos quando Gutinho caiu na noite. As queixas de vó eram frequentes: que Augusto não tinha mais “hora de gente” – e eu não sabia o que era isso –; que estava dando muito trabalho; que era tempo de ele arrumar um lugar; que ela não suportava o cheiro de cigarro de sua roupa, quando punha para lavar; que ele tinha se tornado um “bandoleiro” – e a palavra era um imenso palavrão. Papai tomou as dores de vó e foi conversar com Augusto. Definiu que era seu pai, bem dizer, e que ele devia acolher as suas determinações, porque era papai quem pagava uma parte das contas da mãe – que se tornaram altas com a presença e a madureza de Augusto. Depois disso, papai chegava em casa chorando, relatando que a situação da mãe era muito difícil, que a essa altura ainda tinha de cuidar da educação de um homem feito. Augusto respeitava, mas não aceitava mais o inconveniente de permanecer no casulo de uma dolorosa agonia; tinha de se revelar mulher. Soube, naquele tempo, que “Gutinha” estava trabalhando numa casa noturna como drag queen, com o codinome de Lana Lafaiety – contou-me na surdina, sabendo do meu interesse. Levou-me para o seu quarto e me mostrou um compartimento secreto onde guardava as roupas provocantes e os adereços. Fiquei realmente abismada com a ousadia, e ao mesmo tempo me sentia também poderosa, que podíamos ser muito mais, juntas e realizadas. Em dado momento, Gutinha chamou vó para conversar, disse que tinha algo muito sério para falar. Vó começou a se tremer, e Gutinha titubeou, com medo de ser culpada por um passamento. Logo vó se apoquentou, largou um palavreado chulo, para descarregar a raiva – como era de costume – e manifestou a questão, que sabia das “traquinagens” que Gutinha aprontava, que aquilo não estava certo e que poderia a qualquer momento ser presa. Gutinha pulou com temor da condenação; não sabia que, pelo fato de se assumir mulher, seria presa. A verdade é que vó pensava que Gutinha estava envolvida com drogas e coisas do gênero. Gutinha, aproveitando a hora propícia, revelou que era drag e se sentia muito bem como mulher; que não tinha relacionamentos promíscuos – imaginando que essa seria a sua preocupação –; que queria ser respeitada em sua escolha; e que vó, a partir de agora, a chamasse de Lana. Vó deu um suspiro de alívio. Não era o que ela pensava, definitivamente. Disse que quase Gutinha a matava do coração. Deu um abraço e decretou que nada de nome artístico em casa: seria Gutinha, para facilitar. Papai soube do episódio e concordou com a “nova” condição de Gutinho. A família ficou em paz, nos idos de 1990. Lana Lafaiety foi a história heroica, representativa de uma geração. Foi precursora dos movimentos para o combate à homofobia, para a luta da visibilidade LGBTQIA+. Tenho muito orgulho da minha prima, que hoje não está mais aqui, pois foi vítima, no auge da vida, de um acidente fatal. Por ela, abriram-se as portas do meu destino. Sendo aceita em casa, pude me formar e trabalhar um tempo no Direito – o desejo primordial era de proteger a memória de Gutinha. Sou drag também: Hannah Kiara, abençoada por minha prima e madrinha, um mês antes de sua partida. Agora, é louvar a missão, e luta para os dias que virão. 


Adriano Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, e em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, estes pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com as Revistas Mirada, Samizdat e Vício Velho. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto. instagram:@adrianoespindolasantos | Facebok:adriano.espindola.3 email: adrianoespindolasantos@gmail.com