A febre João, crônica de Luiz Henrique Gurgel

 por Luiz Henrique Gurgel__



                                                                  
                                                           
Sou dado a certos ardores e um tem me acompanhado há meses. Febre que não sentia fazia algum tempo. Veio de forma inesperada, sem que eu soubesse o que a provocou, dias e horas seguidas em mim. Às vezes é mais intermitente, dia sim, dia não, ou, para minha intranquilidade, semana, sim, semana não. É obsessiva, como o herpes, à espreita dentro da gente. Mas esta é benigna, vem e se instala, é sonora e doce.

Quando some, sinto uma espécie de banzo, a ponto de eu mesmo dar um jeito de provocar sua volta. É contraditória, pois baixa a temperatura e me coloca num certo estado de felicidade, meio zen. Ela se repete de instante a instante, em fluxo, toma ares de permanência e aí não se quer mais sair daquele estado. Vibra pela caixa craniana, põe o resto do corpo numa espécie de letargia boa, como uma endorfina.

Ela tem nome, tom, ritmo e um ser que a provoca, fundidos de tal modo que viram uma coisa só. Poderia chamar-se assim: Joãogilbertoéprecisoperdoar.

Não se trata de uma novidade, mas esse ressurgimento fez com que ela fosse sentida e percebida de maneira diferente. Como disse, quando chega - ou quando provoco a sua chegada e este texto está sendo feito com ela no fone de ouvido, obviamente - o estado de espírito vai se alterando.

Não lembro exatamente desde quando sofro disso. O primeiro acometimento deve ter ocorrido na adolescência. Aos poucos virou droga, fumo, yoga. Sempre esteve ali, ao alcance da mão, no disco que o baiano lançou em 1973, também conhecido por “Álbum branco”. E eu jamais perdoei minha mãe por não ter incluído essas canções entre as que punha para eu ouvir no berço. Pouco importa que eu já tivesse sete anos.

Mas a gravação que tem provocado minha pequena ruína só apareceu mesmo em disco em 2016, feita ao vivo em maio de 1976 na boate Keystone Korner, em San Francisco, nos Estados Unidos. Foi organizada pelo saxofonista Stan Getz que acompanhou João com seu grupo.

João mal! Faz a gente sofrer!

Ela começa com acordes encantatórios e suaves repetidos delicadamente. De repente, alguém, um brazuca na plateia, provavelmente atordoado pela febre (e pelo whisky) diz: “João mal! Faz a gente sofrer!”. No violão, o anjo torto reage com uma risadinha marota, sem interromper os acordes, dando início à inoculação do entorpecente. Outro alguém anuncia: “É preciso perdoar”. João parece feliz, de bom humor, talvez entusiasmado no sentido original da palavra, ou seja, repleto de Deus em si. Foi a única canção a ter bis no fim do show. E é exatamente neste bis que está o poderoso veneno. Se eu conseguir que alguém, depois de ler isso, corra para ouvir a gravação (que está aí embaixo) e também seja inoculado, cumprirei a missão, satisfeito como naqueles seriados gringos em que o vilão tem uma doença ou anomalia irreversível e quer que o resto da humanidade também se contamine.

Eu quero.

Mas João vai repetindo os acordes, espera o silêncio, até que sua voz emana, como um pneuma, alma que expira e deixa uma parte de si sair do corpo, levemente anasalada, sopro de vida: “Madrugada já rompeu, você vai me abandonar...”.

Bateria e piano esperam. É preciso pensar bem para entrar no momento exato, tentando chegar o mais perto possível daquela maciez sonora, sutil, etérea, divina, sem que haja nenhum som desnecessário ou supérfluo. O baixo é ainda mais discreto.

A bateria entra com o respeito de quem chega de meias, na ponta dos pés, a uma silenciosa catedral gótica. A baqueta apenas encosta no aro da caixa, como se fosse de cristal. Todo o cuidado é para evitar o menor excesso, o menor ruído gratuito, inconveniente, despropositado. O piano se restringe a suaves comentários, enquanto João Gilberto deixa a voz apenas exalar o suficiente e faz soar o violão do mesmo jeito, de cabo a rabo.

Num desses ataques febris, fiquei mais de 3 horas, ininterruptas, ouvindo a canção. O dedo estacionou no “repeat” para não perder um milésimo de segundo entre o fim da gravação e seu reinício, um oroboro sonoro. Como acontece com as crianças, a gente quer sempre sentir de novo o prazer que experimentou na primeira audição de uma historinha: “canta de novo!”.

Já se disse o diabo de João Gilberto. Nem estou dizendo nada novo, mas é impressionante como o grande saxofonista, Stan Getz, fica excessivo quando entra na canção. Ainda que venha do jeito mais suave possível. Depois João volta e o coração reencontra a paz.

Em 1958, quando o Brasil ainda estava acostumado aos potentes “dós de peito” da tradição de Francisco Alves, Vicente Celestino, entre outros, um representante da gravadora Odeon em São Paulo reclamou com o chefe, durante a reunião da equipe de vendas que ouvia o disco do desconhecido moço de Juazeiro: “É isso que o Rio de Janeiro manda para a gente trabalhar?Agora estão gravando cantor resfriado?” Ouvi essa do grande radialista Walter Silva.

Lolita, minha velha amiga de 4 patas, apreciou o João comigo nas três horas e tanto de audição. Instalada confortavelmente em sua caminha, serena, cabecinha apoiada nas patas dianteiras, só abria os olhos e se virava para mim quando a canção ia chegando ao fim. Era reiniciar e ela fechava os olhos, ajeitava-se e permanecia placidamente assim até a canção acabar e recomeçar. Essa cachorra é das minhas.

Então, peço apenas que ouça nossa maneira de conquistar e corromper o planeta. Com fone de ouvido o barato é melhor. Vai ficar deliciosamente febril.









Luiz Henrique Gurgel é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos "amores malfadados" (Ed. Primata, 2020).