Adoro não apenas a metalinguagem, mas o próprio conceito de metacoisas | Baga Defente

 por Taciana Oliveira__




                              
Baga Defente nos conduz por uma experiência literária singular em seu romance Teu sangue vermelho na minha parede verde (NADA∴Studio Criativo, 2023), onde a própria criação parece ser uma jornada intrínseca à obra. Nesta entrevista, mergulhamos nas camadas complexas de seu trabalho, marcado por um estilo narrativo único denominado "metarromance epistolar". O autor revela que tal termo surgiu como uma epifania durante o processo de escrita, revelando um protagonista consciente de estar tecendo sua própria história literária dentro da narrativa. Assim, a obra se configura como um diálogo multifacetado entre a ficção e a realidade, permeada por diários, cartas, e-mails e outros meios de comunicação.

Leia a entrevista completa com o autor:


1 - O termo "metarromance epistolar" é utilizado para descrever o seu romance. Pode nos contar um pouco mais sobre como você concebeu esse estilo narrativo e como ele se manifesta na obra?

O termo surge já com a escrita em estágio avançado, não foi algo pré-concebido — como praticamente tudo no livro, e no meu fazer artístico em geral, pautado pelas poéticas do acaso. Ele se compõe por duas ideias distintas: “metarromance” surge quando, já com mais da metade do original escrito, percebo que o protagonista se tornou consciente de estar escrevendo um possível livro e passa a explorar isso na própria narrativa. Já havia escrito a 1º versão do Metapoema, presente na obra, e como adoro não apenas a metalinguagem, mas o próprio conceito de metacoisas, resolvi assumir metarromance como uma forma de tentar classificar meu livro. 

Já “epistolar” surge numa conversa cotidiana, não ligada ao livro, quando explico para alguém que esse termos significa carta e que os romances epistolares, muito famosos nos séculos XVIII e XIX, são aqueles que se estruturam a partir da escrita delas, além de diários, notícias de jornais e demais formas “não-literárias” de escrita. Ao dizer isso, me dei conta de que o livro que estava escrevendo poderia ser considerado uma versão atualizada do gênero, visto que estava utilizando diários, cartas, e-mails, chats e até posts de redes sociais para construir minha narrativa. E como eu gosto de inventar novos termos para tentar melhor expressar algumas ideias e conceitos, me pareceu natural assumir “metarromance epistolar” para meu livro híbrido-processual.


2 - A personagem Lucy Lake parece ter uma influência profunda na vida do protagonista, Lêonidas. Como você explorou esse relacionamento e sua ausência ao longo da narrativa?

O livro começa com o súbito término do relacionamento entre os dois, então a resposta para essa pergunta é praticamente a obra em si. Mas, buscando não deixar a pergunta sem resposta, Leônidas parte de um olhar retrospectivo — da primeira vez em que viu Lucy Lake até o momento em que o livro se escreve, abrangendo um período de quase quatro anos — para tentar compreender como tudo aconteceu até culminar no fim da relação. Mas esse processo analítico-sentimental não ocorre de forma cronológica, linear, nem se fecha nesse recorte temporal, mas sim serve como ponto de partida para lembranças e reflexões de outros momentos da vida do protagonista, como infância e adolescência, buscando mostrar como tudo pelo que passamos constrói quem somos, o que pensamos e como sentimos.


3 - A pandemia da covid-19 é um elemento central na trama. Como você abordou os impactos emocionais e psicológicos do isolamento social e da crise sanitária na jornada do protagonista?

O livro começa a ser escrito no final de 2020, nove meses após o início da pandemia, e se conclui no final de 2023, seis meses após a OMS decretar o fim dela. Ou seja, é uma obra que atravessa todas as etapas desse complexo fenômeno que todos vivenciamos. E sendo este livro uma obra escrita em tempo-real, se construindo enquanto a narrativa acontece e sem um fim delimitado, isso foi um desafio.  Ainda assim, eu não diria que é um elemento central, mas um pano de fundo, visto que boa parte da trama acontece durante esse período, em especial a primeira metade do livro, mas ele não é sobre isso — não queria escrever um “romance pandêmico”, “diários da pandemia”, nem nada próximo disso, mas também não tinha como ignorar tal fato e seus múltiplos desdobramentos.


4 - O livro é dividido em três partes distintas, denominadas Nigredo, Albedo e Rubedo, que correspondem às etapas do processo alquímico. Como essa estrutura se relaciona com a jornada emocional e espiritual de Lêonidas?

Só descobri que estava compondo um livro quando já tinha pouco mais de 100 páginas escritas. Só aí, nessa primeira olhada para o material como um todo, me dei conta que não seria um novo conjunto de poemas, mas sim outra coisa, que parte da poesia para encontrar a prosa e se desdobrar num romance híbrido. Ao buscar uma possível estrutura, partindo do que eu tinha e do que esperava ter ao final, o dividi em três partes, temporariamente nomeadas Pré-História, História e Pós-História, entendendo que eu contaria sobre o término, o que veio antes e o que veio depois.

Mais de um ano se passa quando, poucos meses após iniciar um processo terapêutico, durante uma sessão o terapeuta me fala sobre a existência desses três conceitos e de como eles podiam se relacionar à reorganização da psiquê, correlacionando-os com as questões que estávamos trabalhando. Imediatamente os associei à estrutura conceitual que buscava para o livro, o que só reforçou minha desconfiança de que tudo isso — a terapia, o livro, a vida — eram partes de um único e maior processo que eu estava experienciando.

Semanas antes disso eu participara de um evento, uma espécie de feira e, ao olhar os livros usados ali disponíveis para venda, encontrei um sobre alquimia e o comprei. Ao chegar em casa depois da sessão citada acima, fui ler mais sobre as tais três etapas, vi que se adequavam perfeitamente ao que eu queria para o livro e as adotei como essas marcações, pois elas me parecem refletir muito bem a jornada emocional e psíquica do protagonista.


5 - A narrativa do livro é descrita como uma "autogeografia em diálogo com outros autores". Pode explicar como você incorporou influências literárias e como isso enriqueceu a experiência de leitura?

Por se tratar de uma escrita processual, tudo que me afetava durante o período de construção da obra acabava, de uma forma ou outra, aparecendo na narrativa. E como disse, as metacoisas que agradam, então para mim foi natural falar sobre outras obras e autores dentro do meu próprio livro. Isso fica mais evidente quando começo a ler o romance “Minha Luta”, do norueguês Karl Ove Knausgård, o qual havia lido um capítulo quase 10 anos antes e já havia me identificado com o estilo da escrita.

Depois, quando me retiro por um mês no litoral para concluir a escrita do original, leio diversas novelas e contos do chileno Alejandro Zambra reunidas em “Ficção 2006-2014” e “O Romance Luminoso”, do uruguaio Mario Levrero. Ainda que ambos estivessem na minha lista de leitura já há algum tempo, pra mim eles não possuíam qualquer relação com o livro que eu estava escrevendo e  os levei, pois gostaria de dividir esse tempo fora entre a escrita e a leitura, mas não imaginava que eles me atravessassem a ponto de impactar e fazerem parte do meu próprio romance, visto que o diálogo (ou monólogo) estabelecido com esses autores e obras me auxiliam tanto a compreender quanto a compartilhar questões que eu estava abordando na minha narrativa. 


6 - O projeto gráfico do livro é influenciado pela alquimia. Como essa influência se reflete na apresentação visual da obra e qual é o papel da transformação na experiência do leitor?

Sou muito interessado por ocultismo, astrologia e esquisoterices em geral, tanto nos conceitos quanto na estética. Isso já está presente em alguns poemas do meu livro anterior, Pra estancar essa sangria, e de forma bem explícita nos quatro primeiros poemas que deram origem ao romance (que não são os quatro primeiros presentes no livro).

Esses poemas, assim como todos da primeira parte, tiveram versões prévias publicadas no portal Fazia Poesia, com ilustrações originais, feitas por mim, para cada um deles, na qual elementos esotéricos já estavam presentes. Inclusive, a ideia original era ter todos os poemas do livro ilustrados, mas como imagens coloridas encarecem muito a impressão e o número de páginas aumentou consideravelmente, tivemos que deixar essa ideia para, quem sabe, uma possível edição futura.

Assim, optei por trabalhar com monotipias — mesma técnica utilizada na capa do meu livro anterior — utilizando apenas a cor preta para criar as imagens que marcam o início de uma nova parte, fazendo releituras de ilustrações presentes num tratado alquímico do século XV. Já para a capa, também fui atrás de obras místicas seculares, das quais retirei alguns elementos para compô-la.

Sobre a experiência do leitor relacionada ao projeto gráfico, acho que ela se dá mais pela identidade visual como um todo, e não somente pelas ilustrações. Como utilizo diversos gêneros e meios narrativos, achei necessário pontuar isso visualmente na diagramação, trabalhando espaçamentos e tipografias diversos para identificar essas mudanças e auxiliar o percurso do leitor ao longo da narrativa.  



           

7 - Alex Zani, editor e produtor editorial do livro, menciona a relação entre escritor e editor, destacando a presença do editor como personagem na obra. Como você explorou essa dinâmica e qual é a importância dela para a narrativa?

Além de ser meu editor, Zani também é meu sócio no NADA e um grande amigo, ou seja, são raros os dias no qual não trocamos mensagens ou fazemos uma videochamada. Assim, creio que a presença do editor enquanto personagem também seja consequência do caráter processual dessa escrita em tempo-real — num livro permeado por atravessamentos, seria quase impossível que a pessoa com quem possivelmente mais converso no meu cotidiano não estivesse presente.

E todo editor acaba tendo, em maior ou menor escala, um papel secundário de terapeuta de quem escreve — e digo isso sendo eu também editor, tendo muitas vezes que dar suporte e opinar em questões que, num olhar mais objetivo, extrapolam o texto e o livro. Talvez numa narrativa autoficcional, como é o caso, isso fique ainda mais evidente, o livro seria outro se eu não tivesse as trocas que tive com ele ao longo do processo todo — o que é enriquecido pelo fato de nós dois temos gostos, referências e visões distintas em diversos pontos, contribuindo para uma maior pluralidade nas discussões e nos olhares para a obra.



8 - "Teu sangue vermelho na minha parede verde" é um convite para entender melhor o nosso lugar no mundo? Como você espera que os leitores se relacionem com essa mensagem e como ela se conecta com os temas explorados na obra?

Acredito que o livro seja uma tentativa do próprio protagonista reencontrar seu lugar em um novo mundo no qual ele se encontra mesmo contra sua vontade. Mas a forma ele busca fazer isso, se expondo de forma honesta, enquanto aquela ferida ainda sangra, talvez permita que outras pessoas, de diferentes contextos, se identifiquem não necessariamente com as situações, mas como os sentimentos com os quais ele se depara ao longo desse processo.

Esse livro, e meu trabalho na totalidade, dialoga muito com uma ideia de um autor romeno chamado Cioran quando ele diz que “as mais profundas experiências subjetivas são também as mais universais, pois por meio delas chega-se à profundeza primordial da vida”. No livro abordo, obviamente, a questão das relações afetivas, do amor romântico, os encontros e desencontros que ocorrem ao longo da vida, mas também falo sobre paternidade, sendo este um tema que me é muito caro e pretendo aprofundar numa obra posterior. Está presente também a pandemia, que se desdobra na política, e atuam como uma espécie de cenário onde a trama principal transcorre, além de referências metafísicas, que aparecem a partir da alquimia, da astrologia, umbanda, ayahuasca e afins. Ou seja, existem diversos temas que atravessam o livro, e eu ficarei satisfeito se cada pessoa que ler o livro encontrar ao menos alguma passagem das mais de 400 páginas com a qual ela não apenas se identifique, mas veja ali outra possibilidade de pensar aquilo, que algum trecho do livro ressoe nela de maneira a criar uma nova perspectiva sobre alguma experiência que ela já vivenciou.


09 - Por fim, gostaria de saber sobre o processo criativo por trás do livro. Quais foram os maiores desafios que enfrentou ao escrever essa obra tão complexa e multifacetada?

Comecei a escrever o que virou este livro sem saber disso. Em determinado momento isso se torna evidente e, com a aprovação do projeto no Proac, há um compromisso formal, existe um prazo. Então, meu maior receio era o de não conseguir concluir a escrita, visto que, em último nível, eu escolhi a minha própria vida como matéria-prima, e a vida acontece a cada respiração, a cada segundo.

Tínhamos 12 meses para entregar ele pronto, incluindo as contrapartidas. Mas  só consegui me organizar para me dedicar a isso, a conclusão do texto, cinco meses depois, ou seja, quase metade do prazo já tinha se passado quando me ausentei do meu cotidiano durante um mês, tanto para olhar para tudo que já havia escrito quanto descobrir como o livro acabava, incluindo aí todo processo de reescrita e costura para unir essas duas coisas de forma coerente. Concluído isso, ainda tinha o restante: edição, revisão, projeto gráfico, e alguns processos dessas etapas tiveram que ocorrer em paralelo, rompendo com a ordem que esses processos costumam acontecer. E como a identidade visual, incluindo diagramação, foi encabeçada por mim, a escrita foi — quase que literalmente — até o último minuto possível. Os últimos dois meses do processo foram muito intensos!

A minha sorte grande sorte foi poder contar com um editor (Alex Zani) e uma revisora (Ana Moura) que, além de serem pessoas sensacionais que abraçaram o livro comigo desde o início, são profissionais de talento excepcional que se desdobraram para que tudo ficasse como desejado e dentro do prazo disponível. Se não fosse a sinergia existente entre nós — que em breve completaremos três anos de trabalhos conjuntos — e um prazo de entrega por conta do edital, talvez  ainda estivesse escrevendo meu original…




Artista nato, além de pai e poeta, Baga Defente (@bagadefente) é fundador do NADAStudio Criativo, um ateliê multimídia, produtora cultural e editora independente com sede em Botucatu, no interior de São Paulo. Após publicar ‘Pra estancar essa sangria’ em 2021, via Lei Aldir Blanc, livro que reúne seus três primeiros lançamentos artesanais, o autor lança  “Teu sangue vermelho na minha parede” (416 pág.), obra contemplada pelo edital ProAC/SP de 2022.








Taciana Oliveira - Natural de Recife (PE), Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector - A Descoberta do Mundo” .  Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.