Quem mora longe, crônica de Sara Klust

por Sara Klust__




Você é muito bairrista, criticou uma amiga, de visita a minha casa. De jeito nenhum! Se assim fosse, eu nem estaria morando em outro país, protestei! Mas vive falando em seu Estado. Nunca reparou nisso? Que culpa tenho eu de amar Pernambuco? Dei de ombros e servi a amiga mais uma fatia de Bolo de Rolo. E enquanto saboreávamos esse patrimônio imaterial do meu estado, ouvindo Alceu Valença, mudamos de assunto.


Filha de Olinda, na Alemanha, há quase três décadas, vivo com o coração e a mente entre duas culturas. Leio com frequência os jornais eletrônicos de Pernambuco, acompanho pela internet as comemorações e festejos típicos do estado, e procuro estar a par das novidades dos meus que lá ficaram. Na literatura, as obras de escritores pernambucanos estão atualmente no topo da minha lista de leitura. Há alguns dias, li “Lembranças do Recife", do escritor e compositor Antônio Maria, um dos protagonistas do momento de ouro da crônica brasileira. Ele, que mudara para o Rio de Janeiro na década de 1940, citou em seu texto cinco momentos recifenses dos quais se recordou, ao receber notícias da capital pernambucana. Em homenagem ao dia 12 de março, aniversário das cidades irmãs, deixo aqui também registradas as minhas lembranças de Recife e Olinda.


Primeira – As lendas pernambucanas. Certo dia, tendo eu entre oito e nove anos, voltando da escola ao meio-dia, me deparei com o Papa-Figo. Minhas pernas tremiam como bambus finos, a cabeça virando para os lados, ninguém na rua, além de mim e da criatura. Estou perdida!, pensei. Mas se essa coisa mexer comigo lasco-lhe o quengo com a minha mochila! O idoso, carregando o saco pesado nas costas, dobrou a rua, sumindo da minha visão, sem ao menos se dar conta que poucos metros atrás dele vinha uma menina que, de tanto medo, chegaria em casa com a calça da farda toda molhada. Tinha também a Comadre Fulozinha, a Loura do Banheiro, a Cabra Cabriola, mas famosa mesmo era a Perna Cabeluda. Uma vizinha contou que ela aparecia à noite e “pegava” – como se isso fosse possível a uma perna – crianças teimosas. E não é que o membro-lenda tem até face? Só uma, não, várias! Vide coletânea de contos “As várias faces da Perna Cabeluda”.  


Segunda – O parque da Rua da Aurora. Desconheço as regatas da Rua da Aurora citadas pelo escritor Antônio Maria em seu texto-lembranças. Quanto ao parque, que frequentei em meados de 1970, guardo boas recordações. Pai e Mãe levavam meus irmãos e eu, lá, aos domingos. Brinquei muito no foguete-escorrego e nos carrosséis. Tinha também uma roleta onde girávamos em pé e quando o brinquedo alcançava certa velocidade, éramos arremessados. Ouvia-se choro, viam-se arranhões nos joelhos, nos cotovelos... Depois de alguns minutos, lá estávamos novamente, colecionando mais escoriações. O tobogã era o destaque do parque, mas eu mal podia subir nele. Mãe receava, eu tinha apenas cinco anos, ela dizia que era perigoso. Arriscado mesmo é caminhar nos dias atuais na região central do Recife!


Terceira – O alto da Sé. Na adolescência, eu “Olindava”, todo domingo à tarde, na Cidade Alta. Acompanhada de minhas irmãs, amigas e amigos, saltava do ônibus na Praça Dantas Barreto e seguia a pé a Avenida Luís Gomes, uma ladeira extensa, porém menos íngreme que a ladeira da Misericórdia. Essa, sim, faz jus a seu nome! No Alto da Sé, eu comia tapioca com queijo coalho, bebericava Caipimorango ou Caipiruva ou Pau do Índio, e, quando o dinheiro dava, comprava trabalho artesanal de algum hippie. Ponto alto da noite, ser beijada pelo crush (nos anos 80, era apenas o nome de um refrigerante), enquanto mirávamos as luzes do Recife ao longe. Eu então, em plena metamorfose da infância para fase adulta, me sentia mais bonita e feminina.


Quarta – A culinária.  Escondidinho, macaxeira com charque, cozido, dobradinha, bredo de coco, feijão de coco, angu, mungunzá, bolo Souza Leão, Bolo de Noiva, Cartola. E as delícias presentes nas festas juninas, pamonha, canjica, pé-de-moleque... Melhor parar por aqui, ou então a crônica vira romance.


Quinta – As virgens do Bairro Novo. Nunca gostei de carnaval, nunca “frevei” nas ladeiras de Olinda, Galo da Madrugada só vi pela TV, mas sempre curti as virgens do Bairro Novo. Contraditório, não é mesmo? Porém, até minha mudança para a Europa, em 1994, eu costumava acompanhar anualmente esse desfile, pioneiro na tradição de homem fantasiado de mulher, que sempre arrastou multidões – incluindo a tática do arrastão! Este ano, o bloco homenageou o manguebeat e Chico Science, um dos principais colaboradores do movimento, que foi morador do mesmo bairro onde residi até sair do país.


Não é bairrismo. É coisa de quem mora longe.   



Sara Klust 
- Graduada em Comunicação Social, trabalhou nas rádios Cidade e Manchete FM, na assessoria de imprensa do DETRAN e no Jornal do Commercio, antes de se mudar, em 1994, para a Europa. Em 2020 publicou Um novo começo em Hamburgo, e, em 2022, A mãe brasileira, disponíveis apenas na Alemanha e Áustria. É uma das organizadoras da antologia de contos Tinha que ser mulher, cujas vendas são revertidas à Associação Fala Mulher. Mora com o filho e o marido na região do Vale do Ruhr, no oeste do país.