Madrugada dentro, surge o fado de Severa – Poema de Manoel T. R.- Leal

 por Manoel Tavares Rodrigues-Leal_


 “O Fado” — Pintura de José Malhoa — 1910| Maria Severa Onofriana (Anjos, 26 de julho de 1820 — Socorro, 30 de novembro de 1846)


Um poema inédito de Manoel Tavares Rodrigues-Leal evocando a lendária fadista de Lisboa

"A pobre rapariga foi uma fadista interessantíssima como nunca a Mouraria tornará a ter!... Não será fácil aparecer outra Severa altiva e impetuosa” Bulhão Pato

“[…] mas a era da Severa / já não a contemplo. Ouço fado, jogos de centro e de tanto / obscuro trabalho        e a minha tua (de teu) era.” M. T. R.-Leal

*

Madrugada dentro, surge o fado de Severa.

E entre a embriaguez de tanto mestre no antro,

ouço fados, bebo vinho, mas a era da Severa

já não a contemplo. Ouço fado, jogos de centro e de tanto

obscuro trabalho        e a minha tua (de teu) era.

.Lx. 3-9-1976 — caderno sem título – há uma outra versão publicada (Caliban)


 A presente versão é a de cima


 A Severa — Romance de Júlio Dantas — 1901



Nota sobre o poema e último verso 



Os dois últimos versos





“a grammatica é um instrumento, e não uma lei” Bernardo Soares, Livro do Desassossego


Nesta versão agora publicada, a caligrafia é difícil, parecendo trepidante. O poema parece ter sido escrito num meio de transporte ou de noite com pouca luz, conforme supõe o autor nestes casos. A construção do último verso é estranha, como acontece em outros poemas que temos publicado. A tal “estranha sintaxe”: “e a minha tua (de teu) era.” Veja-se, por exemplo, o último artigo com poemas do autor nesta revista:


https://www.miradajanela.com/2024/02/estranha-sintaxe-em-manoel-tavares.html


De facto, esta caligrafia, muito frequente nos “quatro cadernos vermelhos” deste período (capas vermelhas), nada tem a ver com a meticulosidade da escrita que lhe era característica, sempre praticada e grafada com lentidão e cuidado, qual escriba de si ou, diríamos: escriba de escriba. Esta palavra é várias vezes empregue em relação ao seu fazer poético: Escriba de dúbia beleza, que errada escrita…”. 

Por esta altura, o poeta atravessava um período crítico decorrente da iminente ruptura do seu casamento, com vários internamentos em casas de saúde mental antes e depois (“época de loucura”, escreve neste caderno). 

Entre outras dificuldades de leitura, tentámos decifrar e aproveitar uma palavra rasurada (“tua”), enriquecendo ainda mais a complexidade do verso. 

Trailer do filme “A Severa”, de Leitão de Barros (1931):





Maria Severa, o primeiro ícone do Fado em Portugal:


https://www.mundoportugues.pt/2018/07/27/maria-severa-o-primeiro-icone-fadista-em-portugal/?source=post_page-----692f79056551--------------------------------

Artigo com uma outra versão do poema de M. T. R.-Leal:

https://revistacaliban.net/madrugada-dentro-surge-o-fado-de-severa-692f79056551


PESSOA, Fernando (2014). Livro do Desassossego. Ed. de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Tinta-da-china. 2ª ed.


* Coligido de um caderno sem título por Luís de Barreiros Tavares







Manoel Tavares Rodrigues-Leal (Lisboa, 1941-2016) foi aluno das Faculdades de Direito de Lisboa e de Coimbra, frequentando até ao 5.º e último ano, mas não concluindo. Em jovem conviveu com Herberto Helder no café Monte Carlo frequentando com ele “as festas meio clandestinas, as parties de Lisboa dos anos 60 e princípios de 70”. Nesses anos conviveu também com Gastão Cruz, Maria Velho da Costa, José Sebag, entre outros. O seu último emprego foi na Biblioteca Nacional, onde trabalhou durante longos anos (“a minha chefe deixava-me sair mais cedo para acabar o meu primeiro livro, A Duração da Eternidade”). Publicou, a partir de 2007, cinco livros de poesia de edição de autor. As suas últimas semanas de vida foram muito trágicas, morrendo absolutamente só.