Na intimidade do silêncio, um romance de Cintia Brasileiro

 por Adriane Garcia___





Na intimidade do silêncio, romance de formação escrito por Cintia Brasileiro, conta a história de Lia, uma jovem que sai de uma cidade do interior de Minas Gerais para viver em São Paulo e estudar na Europa. A narradora-protagonista nos leva ao seu percurso de crescimento, marcado pela morte precoce dos pais e pelo trauma da doença como estigma. Nesse sentido, Na intimidade do silêncio trabalha com um assunto pouco visto na literatura brasileira: o que aconteceu aos filhos de pessoas soropositivas nos anos 80, quando a AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Humana) era cercada de ignorância, pavor e preconceito, virando de cabeça a vida não só dos doentes, mas de seus familiares. “Os novos leprosos”, assim Lia se expressa: “Da noite para o dia, os boatos começaram a se espalhar como um rastilho de pólvora. Éramos os novos leprosos. Todos tinham receio de se aproximar de nós.” 


Nos anos 80, no Brasil, evitava-se não só a doença, mas o doente. A sociedade transformava o doente em um pária, reduzindo a pessoa a um termo que adquiriu tom ofensivo: “o aidético”. O vírus do HIV, causador da síndrome (na verdade, uma porta de entrada para doenças oportunistas), pode ser transmitido de diversas maneiras, mas ligava-se no senso comum apenas à promiscuidade sexual. A despeito disso, dados da época mostram que 15% dos infectados tinham adquirido o HIV por transfusão de sangue, quando sequer se faziam testes em doadores – para quaisquer vírus – e bancos de sangue particulares pagavam pelas doações.  Uma das comunidades que mais sofreu foi a dos homossexuais, sobre a qual se jogava todo tipo de conclusão ignorante, não levando em conta, por exemplo, o grande número de mulheres casadas que eram infectadas pelo próprio marido em relações heterossexuais. Na caça às bruxas que se tornou o pânico da transmissão em larga escala (uma epidemia), parecia mais importante encontrar culpados do que informações confiáveis. Só mais tarde inicia-se campanha pelo uso de camisinha e começa-se a trabalhar leis de obrigação da testagem nos bancos de sangue.


É no contexto de quem existiu no centro dessa tragédia, que Lia precisa viver para além do trauma e construir uma identidade que não tenha somente esse elemento. Ao pagar pelos erros dos adultos, as crianças se tornam vítimas e, não raro, também algozes por procuração. No caso de Na intimidade do silêncio, as crianças da vizinhança passam a carregar os medos e preconceitos dos adultos e despejá-los contra outras crianças, também perdidas no meio de palavras que sequer conhecem. O primeiro sofrimento de Lia não foi ouvir de um coleguinha que a mãe “tinha AIDS”, mas de não saber o que era AIDS. 


Ler Na intimidade do silêncio é ter contato com uma história singular em que o universal se faz presente. Lia é a menina que precisará desenvolver a coragem de se aventurar noutros territórios, de desapegar-se tanto do que foi ruim quanto do que foi bom, a mãe doente, as lembranças ligadas a hospitais, o rapaz que sofreu lesão corporal em crime de homofobia, o pai que lhe desperta sentimentos ambíguos, talvez mágoa, talvez perdão: “Algumas pessoas possuem buracos tão profundos que não conseguem se conectar de verdade com ninguém. Nem com a própria história”. 


Na intimidade do silêncio fala sobre a descoberta de quem se é, sua afirmação, que inclui a consciência da negritude, a presença do amor, da sexualidade. Outros personagens povoam Na intimidade do silêncio e com eles criamos uma grande simpatia, pois são o alicerce amoroso que dará estrutura à protagonista: “Ali, na recepção do hospital, percebo que muitas famílias, de todas as formas e tamanhos, estão reunidas. Há mais ou menos duas décadas, a minha se resume a nós três: vovô, nossa vizinha e eu.” Dona Dora e o avô Pedro, seus dramas que também compõem a trama fazem o livro ganhar em complexidade. Dona Dora é a vizinha viúva, analfabeta, herdeira da escravidão, que por pura generosidade se tornará uma mãe substituta para Lia, protetora em sua orfandade; o avô Pedro com seu amor genuíno será a figura paterna. Cada um traz, na narração de Lia, a superação de suas próprias dores. Essa empatia, também encontrada na narradora, perpassa o romance. Lia está sempre se relacionando com o outro, inclusive com desconhecidos.


De maneira não linear (porque está se lembrando e a memória não se organiza linearmente), a protagonista faz associações livres em que cenas e situações do presente levam ao passado, compondo um mosaico de infância, adolescência e juventude; vida e luto; mas sobretudo luta. É um livro repleto de carinho e amor, tem a cadência do cuidado que também pode ser sentida na forma. Sua linguagem é poética, não se tratando de prosa poética, mas com recursos dela e da poesia visual, um ritmo que usa a diagramação das páginas para respirar. A voz de Lia é cheia de sinceridade, sua observação arguta do mundo se junta à observação de si mesma. É uma linguagem que escorre, feito água lenta e funda. Cintia Brasileiro, neste que é seu primeiro romance, demonstra uma eficiência em saber contar a simultaneidade dos eventos, a alternância interna e externa. O livro dança com recursos excelentes de entremear à narrativa frases de diálogos ou onomatopeias e interjeições. A memória assalta a protagonista, é fluxo, mas a autora dosa isso muito bem e sabe organizar o mundo de seus personagens sem perder uma espontaneidade. O drama familiar diretamente ligado aos pais da narradora cria uma espécie de história em segundo plano que abala toda a narrativa “A relação-e-morte dos meus pais é como uma assombração.” 


Apesar da dureza dos fatos, Cintia Brasileiro escolhe mostrar a dor com sutileza, exceto em momentos de ápice. Um país aparece ao fundo com sua desigualdade social, racismo, machismo e homofobia. Tudo naturalmente, porque tudo naturalizado; sem panfleto, sem grandes gritos, sem voz de tribuna: nada maior do que os seres humanos que povoam esse cenário. Voz medida para um coração jovial que tendo vivido tanta morte persegue a vida e o seu sol. Em uma das citações do livro aparece Adélia Prado, um verso que traduz a linguagem que Cintia Brasileiro alcançou: “dor não é amargura”.


“Mãe, meu nariz sangrou na escola. Parecia que uma bomba tinha caído na sala de aula. Senti no ar o pavor que tomou conta de todos. Dentro de mim, tudo fervia. A professora congelou, não queria se aproximar e não sabia o que fazer com o lenço que tremia nas mãos dela. Eu também não sabia. Ninguém queria tocar em mim, mãe. O ventilador estava quebrado. Lá fora, um sol de rachar mamona, aí meu sangue escorreu pela minha boca, carteira, manchou meu uniforme e gotejou até o chão. Na sala, trinta crianças e a professora, e eu estava só. Peguei o lenço da mão dela, mãe. Tampei meu nariz, saí correndo em direção ao banheiro e desejei nunca mais ter que voltar.” (p.13)


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Na intimidade do silêncio

Romance

Cintia Brasileiro

Ed. Aboio

2023



Cintia Brasileiro (Passos/MG, 1983) vive em Araçatuba/SP, é redatora publicitária e mediadora do Clube de Leitura Escritoras Brasileiras. Possui crônicas e contos publicados em antologias. Pesquisa literatura feminina brasileira desde 2011. Lançou de forma independente seu primeiro livro infantil, Versinhos Doces, em outubro de 2021. Acredita que a leitura e a escrita libertam. Na intimidade do silêncio é seu romance de estreia.




Adriane Garcia
poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você  (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé ( Caos e Letras, 2023)