Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias, de Luiz Henrique Gurgel

 por Ana Villas Boas__



Vislumbrar a fluidez de um mundo que se constitui através da trivialidade da vida cotidiana entrelaçada com memórias, afetos, sons, cheiros, um olhar que não é necessariamente o ver, mas o “emergir da coisa”. Isso não é um resumo, mas a primeira sensação ao término da leitura de Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias, de Luiz Henrique Gurgel (Caravana Editorial, 2023). O autor ora nos apresenta reminiscências de um passado que ainda se faz presente, ora nos conta um pouco sobre a vida na cidade “emergente” da atualidade, aparentemente opaca e carente de energia vital pulsante, tamanha a dificuldade, no dia a dia, de se olhar a paisagem urbana e ser capaz de abstrair o movimento intrínseco nas relações humanas. 

A escrita de Luiz Henrique, desde o seu processo inicial de criação até a publicação, lembram o ensaio sobre a dádiva de Marcel Mauss e a felicidade compartilhada de Tolstói. Ele nos presenteia com a luz que há em momentos raros de beleza num mundo cada vez mais fragmentado e hostil, demonstrando como a presença e a partilha evocam a urgência de buscarmos refúgio - mesmo que seja dentro do inferno –  identificando quem e o que não é inferno e, conforme Ítalo Calvino, preservá-lo e abrir espaço. Neste sentido, Por que era ele, porque era eu e outras quase histórias, me remete a As Cidades Invisíveis, quando Ítalo Calvino diz que “as cidades, como sonhos, são construídas por desejos e medos”. 

Mesmo que as histórias do livro sejam independentes - tendo, apesar disso, sido agrupadas em 4 temas que, paradoxalmente, poderiam ser interdependentes - ouso escolher um fio condutor que poderia tecê-las, a fim de demonstrar como a vida urbana (nas pequenas ou nas grandes cidades) pode ser reinventada a partir do que o autor nos apresenta, nos conduzindo por histórias autênticas e comoventes, afetando a cada um conforme a sua própria história. 

Sobre “Pequenos momentos”, por exemplo, me fez (re)viver sentimentos profundos, numa mistura de melancolia, nostalgia, alegria, pertencimento, vontade de sair correndo para abraçar a minha mãe! São os momentos que suscitam o “komorebi”, palavra de origem japonesa sem tradução para o português, mas que se refere, essencialmente, aos raios solares que passam entre os ramos e as folhagens das árvores (para quem ainda não viu, corra ao cinema mais próximo e assista “Dias perfeitos”, do cineasta alemão Wim Wenders). São como uma fotografia, que fica eternizada na memória e que nunca se repetirá da mesma maneira. 

Os “cronicontos”, como o autor os chama, se mostram como um retrato do cotidiano que é a soma de insignificâncias - mas não de insignificantes - quando cada história é uma revelação, como em "Breve crônica de inverno para uma infeliz cidade”, que logo identifiquei com a cidade que também habito há quase 20 anos e a qual percorro quilômetros e quilômetros em minhas corridas anos a fio. Desta maneira, reconheço cada fragmento contido no texto de Luiz Henrique, pela vivência radicalizada, ao olhar para os mesmos lugares e interpretá-los de maneiras diversas, enxergando a potencialidade de mundos utópicos, atenta aos ínfimos detalhes, aos filigranas, pois entendo que o urbano, além de marcar o ritmo da vida, marca, também, o modo de vida e o pensar a vida. E isso nos transporta para a esfera da ambiguidade, pois a cidade deixa de ser um conceito meramente geográfico, cedendo lugar a uma complexa simbologia, bem como o inesgotável da existência humana. Talvez seja esta a leitura que tenho sobre os relatos que Marco Polo faz ao imperador Kublai Khan, para lembrar mais uma vez o livro de Calvino, e é assim que exercito o olhar para a cidade descrita por Luiz.

Enquanto a dimensão espacial está em suspenso dentro de mim ao ler as crônicas - ou pequenos contos ou “cronicontos” - do livro, encontro uma dimensão temporal transmutada em diferentes temporalidades, como em “Estranho sentimento do tempo” e “Drummond em busca do menino antigo”. E é impossível não associar esses textos, mais uma vez, com a cultura japonesa, na qual parece que o tempo é “elástico” de acordo com as conveniências. Shuichi Kato, um historiador japonês que tratou deste tema no livro Tempo e espaço na cultura japonesa, explica que é necessário tempo e espaço para que as coisas fluam e aconteçam para que não haja estagnação. Ele traz à tona que, em japonês, as palavras jikan (tempo) e kuukan (espaço) compartilham o mesmo ideograma (間) que, por si só, contém o significado de tempo-espaço quando pensado em intervalo temporal ou espacial. 

Daí, então, retomo as histórias que mencionei acima e busco ler com os olhos dele e de Drummond, quando este se refere à sua cidade natal, Itabira, por meio da poesia:

“Naquele lugar - pois, mesmo morando no Rio de Janeiro, Itabira nunca saiu de Drummond - sua atenção estava voltada para “o invisível, o esvoaçante, o esquivo”. Ele se referia à própria memória e ao mundo da sua infância e adolescência, buscando vestígios lá do alto (ao sobrevoar a cidade). Mundo possível de ser transmitido de um único jeito, segundo o autor: pela “via poética””.

E me refiro, também, ao texto sobre lembranças nas quais tempo e espaço se confundem no ambiente familiar onde o neto, que mal conhecera seu avô em vida, busca forjar uma memória em torno de como deveria ter sido seu ancestral:

“Pensava nisso imaginando que há movimento ou pelo menos sensação de movimento nesse modo de sentir o tempo. Ainda que pareça o movimento de um parafuso espanado, que gira e se altera, se desgasta, dá volteios num vai e vem que não sai do lugar. A ideia de que se vai de um tempo para outro não parece fazer sentido, pensando assim. É como se houvesse um tempo contínuo e único, e consumir-se fosse inerente, independe das voltas que a Terra dá em torno do Sol, do Sol pela Via Láctea, da Via Láctea pela…”

Aristóteles já dizia que o tempo só existe quando existe movimento. Para o filósofo da antiguidade, o tempo é contínuo e infinito. O movimento é contínuo, e assim é porque se desenvolve através de um espaço contínuo. 

Finalmente, diante de uma obra que me convidou a refletir, ao resgatar referências de estudos e pesquisas acadêmicas e independentes acerca dos temas apresentados por Luiz Henrique Gurgel em seus “cronicontos” envolventes e instigantes, busco despertar o mesmo interesse a outros leitores, para que possam também ser conduzidos a uma busca, em seu interior, por meio desta leitura, aquilo que, na contemporaneidade, parece nos deixar apáticos e sem esperança. Certamente, Por que era ele, porque era eu e outras quase histórias, é uma breve (e bela) jornada para revisitar a memória e o cotidiano em sua trivialidade e, ao mesmo tempo, o (re)encantamento pela vida.





Ana Villas Boas
vive em Santo André, no ABC Paulista (SP). É mestre em ciências sociais, com foco em sociologia, vida cotidiana e urbanismo. É também instrutora de kundalini yoga, corredora, praticante zen budista e aspirante a montanhista. Publica alguns de seus pensamentos, afetos e vivências em
https://movimentofluente.wordpress.com .





Luiz Henrique Gurgel é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos "amores malfadados" (Ed. Primata, 2020) e "Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias" (Caravana Editorial, 2023)