Um conto do livro Amparo Secreto, de Adriano Espíndola Santos

  por Adriano Espíndola Santos__


                                               

               
               

Eu não sabia chorar


Nove de julho de 1988. Céu já baixo, 17h. O telefone toca e minha mãe corre para atender. Duas palavras trocadas. Ela solta um suspiro e chora contida. Brincávamos, eu e meu irmão, de carrinho na sala. Eu não estava mais atento ao joguinho, e o pequeno me empurrou, com força. Se fosse em outro momento, seria o estopim para começar uma briga. Mas, não, estava focado nas reações de minha mãe. Ela respondia ao telefone mudo monossilábica. “Sim”, “Meu Deus, uma pena, amor”. “Como vou explicar para as crianças?!”. Fiquei incomodado. Eu estava envolvido nisso? Pensei que poderia ser uma surpresa, algo secreto. Sorri para mamãe, ela me respondeu com um riso morno, ao tempo em que saiu para o banheiro e se trancou. Não entendi nada. Meu irmão estava agarrado às minhas costas, feito um macaquinho desengonçado; pulava e puxava os meus cabelos. Tive de pedir a intervenção da superiora. “Mamãe, me ajuda, o Dudu está me batendo. Ele vai me matar. Vem logo!”. Ela gritou do seu refúgio: “Já estou indo, meu filho, só um minuto”. E o minuto, com um milhão de segundos, parecia eternidade. Teria de me resolver com o meu irmão? Felizmente, mamãe saiu do banheiro, limpando o rosto numa toalha pequena, velha, que não servia para nada, toda ensopada. Ela pegou o meu irmão pelo braço e o arrastou para o quarto, porque disse que precisávamos nos arrumar para visitar a vovó – a parte final saiu entredentes, quase sem querer sair. Eu os acompanhei, cismado. Ela abriu o guarda-roupas, tirou uma camisa e uma calça, e determinou: “Filho, se arrume, estamos de saída!”. O motivo de ter vestido a calça ao contrário fez com que ela se aperreasse e me desse um tapa na sola do pé. “Vamos! Presta atenção, menino!”. Logo chorou e pediu desculpas. “Desculpa, filho, estou nervosa”. Sim, ela tremia como a minha maquininha de aerossol. Mamãe se arrumou como dava, com duas crias a tiracolo. Dudu corria pelo quarto, procurando chamar a atenção. Permaneci sentado na cama; não queria chateá-la mais. Havia uma mistura de raiva e tristeza no ar. Fui acometido pelo mal e emburrei a cara. “Já está na hora! Temos de ir agora, Adriano!”. Entendi que estava incumbido de carregar o meu irmão; tinha de prendê-lo para, também, protegê-la. Puxei-o de encontro ao corpo e fomos em passos lentos, seguros. Mamãe apagou as luzes da casa. No telefone, pediu um táxi para a Monsenhor Otávio de Castro, 781. Repetiu a informação uma, duas vezes, decerto havia má conexão. “Preciso que venha rápido. É caso de urgência!”. Abriu a porta que dava para a garagem, e todos esperamos, sentadinhos, no banco do jardim. Ouvimos uma buzina leve, um toque de chamada. Ela estava com as chaves a postos e rapidamente destrancou o portão. O motorista, solícito, abriu a porta de trás e pediu que entrássemos – nessa hora, Dudu quis sair correndo e eu o interceptei a tempo, jogando-o dentro, como uma mercadoria. Eu estava farto daquela história. Nunquinha havíamos saído assim, com tanta pressa e desmazelo. Mamãe interrompeu os meus pensamentos avisando ao piloto, enérgica, que carecíamos ir depressa. “Vá pelo caminho com menos trânsito, por favor… Minha sogrinha, meu Deus! Ai, meu Deus!”, repetia entre murmúrios. O motorista entendeu o recado e se tornou, ali, o Ayrton Senna. Agarrei-me ao meu irmão, para nos blindarmos dos solavancos. O homem tinha um paninho na mão que usava, constantemente, para limpar o rosto suado. Parecia pouco experiente no ramo da corrida. Mamãe passou um bom tempo de cabeça baixa, com as mãos na testa. Chorava como se estivesse com vergonha, encasulada. Respirava fundo e virava, algumas vezes, a cabeça para trás, atada ao banco do passageiro. Chegamos à casa de minha tia em quinze minutos, para uma viagem que durava trinta, talvez. Ela deu uma cédula graúda ao homem e disse que não precisava de troco. O motorista agradecia em reverência; com certeza não era acostumado a tal bondade. Mamãe abriu a porta com tanta força que imaginei o taxista usando o dinheiro recém-recebido para consertá-la. Ela pegou o meu irmão no colo e pediu para que eu fosse na frente, abrindo caminho. Minha tia morava no terceiro andar de um prédio com escadas. Abandonei-os e subi correndo. Abri a porta e me deparei com uma cena estranha: estavam várias pessoas chorando, conhecidas e não conhecidas, espremidas no cubículo da sala. Não conseguia ver o meu pai. Ninguém me deu atenção. Por alguns segundos, fiquei zanzando entre a sala e a cozinha, num limbo sem fim. Em seguida, percebi a presença de minha mãe, que se juntou ao coro. Meu irmão correu para os meus braços. Ele ansiava que nos escondêssemos; estava com profundo medo. Eu afirmei que ficaria o tempo que fosse com ele, só com ele. Num instante depois, minha tia veio beijar a minha cabeça. “Sua avó, meu filho… Sua avó!”. Era sempre interrompida por um engasgo, que a fazia tossir alto. Meu irmão se escondia atrás de mim, próximo à geladeira, local imune à aglomeração. Vi um tio se jogar no chão, arrebentado, chorando convulsivamente. Pensei que ele poderia estar doido ou bêbado demais, como nas vezes que o vi. Batia os braços no chão, pedindo explicações – não se sabe a quem. “Nem numa hora dessa o seu tio para de beber… Ai, meu pai, tenha compaixão dessa alma!”. Ela saiu do nosso lado, pegou o irmão e o levou para fora do apartamento, pedindo que uma de suas sete filhas o acompanhasse. “Até ele melhorar, minha filha… Faça isso, cuide dele. Não quero ninguém tendo um troço aqui!”. Mamãe passou desgovernada e não deu fé que estávamos a poucos centímetros de distância. Tinha, agora, os olhos arregalados e acesos; procurava o meu pai. Andei um pouco, o máximo que pude, tapando os olhos do meu irmão, para que não visse o rebuliço. A intenção era ir ao quarto da minha tia. Lá havia outro grupo, que se revezava nos gritos e prantos. “Ai, não, minha mãezinha… Meu Deus, me ajuda!… Eu quero morrer também, meu Deus, me leva!”. Sim, esta era a voz do meu pai, reconheci no ato, apesar de embolada, disforme. Precisava chegar perto dele, saber o que de fato estava acontecendo. Ele zelaria por nós, os pequenos? Meu irmão não me deixava andar; era uma pedra de mil quilos. Como insisti muito, ele correu para a cozinha e foi se camuflar em algum lugar. Corri para o quarto. Vi a minha avó deitada na cama e várias pessoas ao redor. Meu pai segurava a cabeça da mãe, passando as mãos em seus cabelos. Mamãe estava ao seu lado, desconsolada, também participando do ritual de passar as mãos nos cabelos, só que de papai. Tentei atravessar a multidão que não me via. Imaginei que estava invisível e poderia fazer o que quisesse; não seria recriminado por isso. Senti um tranco que me parou. Uma prima, que sequer lembrava de seu rosto, se abaixou, olhou nos meus olhos, séria, e determinou: “Chora, menino, chora! Não tá vendo que todo mundo aqui tá chorando!?”. Fiquei assombrado com a afoiteza da ordem. Eu teria de chorar, mas não havia lágrimas. Por que teria de chorar sem vontade? No mesmo segundo, senti o mundo girar, estando eu dentro de uma bolha, ouvindo os resquícios de humanidade como um eco pelo ar. Apaguei… “Mônica, por que você trouxe esse menino? Não sabe que ele não dá para essas coisas?! Devia ter deixado na sua mãe!”. “Gente, para, ele acordou!”. Mil rostos aflitos em cima de mim. “Calma, filho, é que sua vozinha se foi… Ela é uma estrelinha, agora, está no céu para olhar por nós”. E, de longe, vi a minha prima, com sua cara de repúdio à minha conduta incivilizada. Eu não sabia chorar.



Adriano Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, e em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, estes pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com as Revistas Mirada, Samizdat e Vício Velho. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto. instagram: @adrianoespindolasantos | Facebok:adriano.espindola.3 email: adrianoespindolasantos@gmail.com