Caminho das Aves, de Danilo da Costa-Cobra Leite

 por Taciana Oliveira__


                                                       
Radical em sua proposta e inovador em sua forma, Caminho das Aves (Kotter, 2025) é um livro de poesia que recusa caminhos já trilhados. Danilo da Costa-Cobra Leite apresenta aqui uma obra que desafia não somente os leitores, mas também as estruturas sintáticas e os próprios fundamentos da linguagem poética. Trata-se de um projeto literário que dispensa verbos conjugados, tempo linear e convenções narrativas, apostando numa sintaxe elíptica, rizomática, fragmentária e altamente simbólica.


O livro é composto por diferentes seções que intercalam poemas numerados, intermezzi experimentais, palíndromos em forma de quadrados mágicos e até um poema-quadrinho. Essa multiplicidade formal não é aleatória: cada parte contribui para a construção de uma poética que se pretende ruptura — ruptura com a lógica do verso tradicional, com o lirismo clássico e com o sentido “pronto”. O título, Caminho das Aves, já anuncia essa busca por uma liberdade deslocada, aérea, porém não menos carregada de angústias, delírios, ironias e críticas sociais.


Na primeira seção, intitulada “Null”, o autor apresenta o programa estético do livro: uma narrativa sem verbos finitos, que reflete a sensação de impotência diante de um mundo desumanizado, governado por algoritmos, muros e vigilância. É um prefácio-poema-manifesto que já coloca o leitor em estado de alerta: o que vem adiante não buscará conforto, mas desassossego.


Ao longo dos 44 poemas numerados em algarismos romanos, Danilo mistura o lírico ao político, o cotidiano ao mitológico, o filosófico ao grotesco. As imagens são muitas vezes vertiginosas, como num pesadelo urbano ou numa alucinação metafísica. Há referências à tradição literária (Os Lusíadas, a Eneida, Shakespeare), mas elas aparecem subvertidas, desmontadas, reelaboradas como matéria viva de uma escrita que quer se fazer nova. Em alguns momentos, a voz poética se aproxima da prosa; em outros, recorre à forma minimalista, como no poema XIV — “Cheiro de gramínea / Brevidade” — onde o mínimo concentra densidade sensorial e complexidade semântica.


Entre os elementos mais originais da obra estão os quadrados palindrômicos (inspirados no Sator Arepo), que funcionam como poemas visuais e sonoros, reforçando o interesse do autor pela experimentação formal e pela exploração dos limites do signo linguístico. Também há cruzadinhas, formulários e desafios que rompem com a passividade da leitura: aqui, o leitor é convocado a ser coautor do sentido.


Além do conteúdo textual, o livro se destaca também por seu projeto gráfico retumbante, que não apenas acompanha, mas intensifica a potência da proposta poética. O cuidado com a disposição visual dos textos, a tipografia e o uso do espaço em branco são recursos que dialogam diretamente com a ousadia formal do autor. As ilustrações de Sandro Saraiva ampliam essa experiência estética, trazendo uma camada imagética que não ilustra os poemas, mas os tensiona, amplia e traduz em outras linguagens. É uma obra que se lê com os olhos, os ouvidos e os nervos.


A parte final, “Qual é o reto deste livro?” retoma o símbolo da ave noturna que observa o mundo com os olhos semicerrados. É metáfora perfeita para a poesia de Danilo: vigilante, disfarçada, silenciosamente insurgente. Ao mesmo tempo que se esconde, observa — e ao observar, resiste.


Caminho das Aves é, acima de tudo, um livro que exige trabalho. É preciso estar disposto a se perder, aceitar a ausência de chão, desaprender a ler esperando clareza. Como escreveu a própria apresentadora da obra, Letícia Stasis Filomena, “teu livro me fez sofrer” — mas talvez seja esse o maior elogio possível para um livro que deseja ser mais do que leitura: um acontecimento.




Poemas do livro:


I


diante do muro, fechado ao horizonte

a imagem na mente de uma saída,

êxodo de nuvens — numa piscadela —

e de outro lado suaves vozes de ondas

uma confusão de mares invisíveis,

ou pessoas maldosas num jogo cruel

de tortura ao pé desse arrimo ecoante

nos separante, eles, premeditantes

com seus sussurros velares e cicios

crime ao talante — odiável júbilo alheio! —


e de todos os pesadelos de meus cães

a causa maior.


XVI


Que eles, com suas forcas, catapultas, penas,

Tenazes, unhas, olhares e panópticos, aqui

Mais sutis e traiçoeiros do que a liberdade.

Preso aos prédios da minha cidade, o que,

Preço da intimidade, cantos para espelhos,

Poemas de agrado do ego, morte silente,

Tudo — um desagrado e uma resignação —

Enquanto as pombas, seres vis e doentes,

Com seus esvoaçares e arrulhares, rolas-

ratos, mais livres do que o mendigo cínico

com a lanterna, com as perguntas, o riso,

qual o nome do medo da melhoria de pombas?

A alvedríopúa.


















Danilo da Costa-Cobra Leite nasceu na porção ocidental da Cidade de São Paulo do Rio Tamanduateí, lançou outros 5 livros: "Paralithomaquia", "Nhe'enga a more quixotesco", "Nenhuma chuva em vão: quebra-cabeça"," Epyka", "24 horas-haiku". É servidor público municipal e doutor em letras.














Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo”. Publicou "Coisa Perdida" (Mirada, 2023) livro de poemas.