Carta e poema evocando Camilo Pessanha | Manoel Tavares Rodrigues-Leal

 por Manoel Tavares Rodrigues-Leal__



Camilo Pessanha (Coimbra – 07/09/1867 – Macau – 01/03/1926)



 


Seixinhos da mais alva porcelana,

Conchinhas tenuamente cor-de-rosa,

Na fria transparência luminosa

Repousam, fundos, sob a água plana

[…]

Conchas pedrinhas pedacinhos de ossos… 

de um soneto de Camilo Pessanha

*

Rodopiantes de Novo, astrais de Subtileza, os seus poemas engastam mágicas pedrarias que transmudam cores e músicas

Mário de Sá-Carneiro sobre Camilo Pessanha (Jornal República – 1914)



Nota prévia — Pela primeira vez se publica uma carta com um poema, na íntegra, de Manoel Tavares Rodrigues-Leal (1941-2016) ao amigo Eduardo Jorge Garcia de Freitas [Sociólogo], evocando Camilo Pessanha. Redigida durante um internamento na Casa de Saúde Mental de Belas (Sintra — “Irmãs Hospitaleiras”). Na verdade, trata-se de uma “carta por enviar”, conforme uma nota posterior no manuscrito (6/12/1992). Não deixa, contudo, de ter um interesse biográfico e, mesmo, poético, literário. A carta inclui, na sua preparação e rascunhos, um poema e não dois, conforme se verificou recentemente (“Este poema […] não seria possível […] sem a transgressão do génio visionário e legendário daquele que foi o autor da nossa Clepsidra”). Assim, os dois poemas publicados num artigo anterior (Caliban — 15/08/2020 — ver no final a ligação) com a publicação parcial da carta —, constituem, afinal, um único poema. Há duas breves notas inéditas referentes ao respectivo caderno de manuscritos (“Fragmentos de um Livro Dividido" (Anónimo do séc. XX) — 1976). Publica-se também uma “Nota introdutória” inédita, precedendo a carta. O que significa que o autor pretendia incluir o texto epistolar (enviado ou não) como um elemento importante no corpus da sua obra. 


Nota introdutória de MTR-Leal (inédita):

Para o Eduardo Jorge, em testemunho da sua inteligência, mas, muitíssimo mais do que isso, com profundo afecto (para além dos reinos nórdicos e cumplicidades [viagem que fizeram à Dinamarca nos anos 70]) da penumbra de um poeta que já o é, não ao nível da praça pública, mas ao nível mental e fabular, que jamais esquecerá sua antiga amizade insubmissa, de que de um amigo autêntico e seus três filhos o amigo e poeta não abdica. 

Manoel

*

A carta e o poema

Belas 20-9-76 


Meu claro e caro amigo 


Escrevo-te de aqui, de onde sabes. A conjuntura conjugal atingiu seu auge. E eu, sensível e magoado, tão irmão da unidade e tão dividido, soçobrei e aqui estou com grande escassez económica. (Porventura com uma grande riqueza de espírito).

Estas palavras que te envio, são breves, lacónicas como convinha: são o testemunho de um passado que ainda é presente, e mais do que a dispersão das palavras, há o recorte rigoroso do poema que aspira ao rigor, à estreme verdade, unidade divina que a é terrestre e humana.

Este poema, digo-te, não seria possível sem uma re-leitura e reflexão inteligentes, e sem a transgressão do génio visionário e legendário daquele que foi o autor da nossa Clepsidra, em um tempo tantas vezes anoitecido (o génio tem a sua noite), porém sempre primitivo, daquele que, em vida e seu poente, se chamou Camilo Pessanha.

Como te tinha dito, houve uma subversão dos valores e cânones da minha escrita: o poeta, o artista autêntico, está sempre atento à mutação das coisas. E subjaz à sua escrita, à sua perene poesia, o homem sofrido cuja condição é sofrimento, revelação, iluminação, quantas vezes reptilínea loucura. Mas pouco importa, é condição intrínseca à do poeta maldito.

Mas talvez me arrume, comodamente, ao esquema da realidade: jamais abdicarei do cerne do real que é conhecimento das coisas sem as visitar, o lugar virgem aonde ascende a deidade do corpo do poema que é dualidade presença-ausência.

Perdoa não ter omitido estes elementos.

Peço-te que não me respondas, e talvez esta experiência atroz da solidão me restitua o essencial. Mesmo sem mulher, que mais amargo é.

Foi com grande esforço que faço estes 10 dias em Belas. Até porque as nossas condições económicas são precárias.

Um abraço do teu amigo cujo pensamento te saúda

Manoel

*

Oh sonhos fátuos que jazeis,

oh boémias de íris nórdicas, não respireis,

oh ondas virtuais e rituais, não cedais,

oh núbeis catedrais, não vos esqueçais.

Oh nossas urnas, vibráteis sob vários ventos, não vacileis, não suspireis, por que voais,

vós que povoais nosso norte e sul, de tão nua vida nos privais? Não vos acendeis,

deixai que nossas cinzas circulem, mesmo após a morte, através das urnas dos poetas. Não os mateis,

que seus poemas dispersos e vitrais antigos e perfis renasçam, não vos comoveis.


Lx. 17–9–76 [do caderno Fragmentos de um Livro Dividido (Anónimo do Séc. XX)]

*

Manuscrito do verso da carta


*

“Belas, casa de saúde mental; manicómio para gente fina; uma duquesa iria para ali.” 

“Não quis nem pude introduzir alterações neste caderno de poesia: ele foi-o e é-o como tal, incorrupto e doente… Mas corresponde a uma época importante da vida do seu autor e, assim, imerso na nostalgia do ser.” (nota manuscrita inédita)

“Este caderno escrevi-o muito doente por causa da Ana [ex-mulher], internado em Belas” (nota manuscrita inédita)

(MT R-Leal)

*

Manuscrito da Nota Introdutória e rascunhos da carta 

Camilo Pessanha em Macau


Leitura de um soneto de Clepsidra – por Manoel Tavares Rodrigues Leal


Artigo na Caliban com a publicação parcial da carta

https://revistacaliban.net/100-anos-de-clepsidra-dois-poemas-e-uma-carta-in%C3%A9ditos-evocando-camilo-pessanha-iv-9d323f4e6136

4 poemas inéditos a Camilo Pessanha (I)

https://revistacaliban.net/4-poemas-in%C3%A9ditos-a-camilo-pessanha-i-c297ae3777c3

5 poemas inéditos a Camilo Pessanha (II)

https://revistacaliban.net/5-poemas-in%C3%A9ditos-a-camilo-pessanha-ii-f59299449558

Outros vídeos com MTR-Leal lendo Pessanha 

https://www.youtube.com/watch?v=K79uOlwPdpo&ab_channel=LbtavaresTavares


https://www.youtube.com/watch?v=H8QVA076Boc&ab_channel=LbtavaresTavares



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*Nota introdutória, carta e citações de MTR-Leal coligidos por Luís de Barreiros Tavares




Manoel Tavares Rodrigues-Leal (Lisboa, 1941–2016) foi aluno das Faculdades de Direito de Lisboa e de Coimbra, frequentando até ao 5.º e último ano, mas não concluindo. Em jovem conviveu com Herberto Helder no café Monte Carlo frequentando com ele “as festas meio clandestinas, as parties de Lisboa dos anos 60 e princípios de 70”. Nesses anos conviveu também com Gastão Cruz, Maria Velho da Costa, José Sebag, entre outros. Trabalhou na Biblioteca Nacional como “Auxiliar de Armazém de Biblioteconomia”. “A minha chefe deixava-me sair mais cedo para acabar o meu primeiro livro”, A Duração da Eternidade (2007). Publicou cinco livros de poesia de edição de autor. As suas últimas semanas de vida foram terrivelmente trágicas. Caído no quarto, morrendo absolutamente só no Natal e passagem do Ano 2015–2016.