por Leandro Aparecido de Souza__
fica, pai
os humanos desejaram penetrar no Campo objetos
criados pelos delicados: por certo os delicados que criaram o cercamento
para depois ficarem livres para criar a esmola.
sequer a chuva maleável
atina o que é isso de cercamento.
deseja ser mais caridoso que um composto biológico que se grafa tão complexamente
como este: á g u a ?
agora eu só quero ir.
e não serei impedido.
eu quero mesmo mostrar esse meu rosto
destruído.
meu esforço não gera nenhuma satisfação.
comecei até bem, com finca-pé.
porfiei e matei caça.
aferrei minhas ferramentas.
uma idolatria assim rural.
quem é que não tem seu
bezerro de ouro?
as pernas humilhadas
de um homem sem estima.
meus filhos sentem vergonha de mim.
sempre com fito triste caminhei, nem
deixei atrás um rastro que significasse porque
esperar reconhecimento machuca eu resmungava
coisas aos cantos
tomei minha partícula no bolso e caminhei
sempre
desloquei tudo que esperava com alegria
ingênua. tomado como párvulo não contesto
nos contratos me revelo em débito
com imaginação. sei que verto expedientes
vexaminosos espero pouco
jogo limpo. não insisto em descontos
honro compromissos com um
fanatismo
não mais apreciado.
ninguém tem interesse em que eu permaneça.
deixarão ir o velho soldado da lavoura.
soldado raso.
todas as minhas guerras foram perdidas.
entrei num círculo de hostilidades familiares.
arcos de rancor mal escondidos.
as labaredas do ódio arruinaram
minhas mudas.
o solo semeado na ação violenta do clima.
adubo de emanações invasivas
de emanações infectas.
porque simplesmente colocar o
alimento
na mesa não é uma vitória.
esse sucedenho só alegrava a mim
e a minha
velha.
na sua cadeira de balanço
tecendo seus segredos de matriarca
com olho miúdo e esperto.
outrora rija comigo
na lavoura para
os meninos.
contentes dos hortifrutigranjeiros.
compositores de ceres.
eles cresceram, floresceram, deram frutos
e eu nunca pude fazer mais do que isso.
e agora, a minha vista se escurece.
eu queria apenas uma razão.
para ainda me apegar a esse mundo.
queria que dissessem:
fica, pai.
dos meus rebentos jamais receberei
condecoração.
eu não sei fazer outra coisa.
só sei arar a
terra.
meus pés nunca cruzaram a fronteira da relevância.
agora eles já possuem o peso dessa espessa
escuridão.
os pés dos meus frutos não puderam abandonar
a cidade
para um afago.
partirei sem adeus.
sem olhar de reconhecimento.
meu corpo velho
e
alquebrado será olvidado até o último instante.
fiquei perdido nos lapsos da infância deles.
veredicto ainda na puerícia.
em momento algum quis escapar
da judicatura.
a esquivança foi da outra parte.
consanguinidade caída em inércia.
flagelado nos quatro costados.
pendurarei minha enxada,
minha arma da vida, cruzada, na parede.
os pés de terra que me cobrirão
serão sempre anônimos.
apodo de soldado.
campeador dos roçados.
parteiro de nossa mãe comum.
continente de organicidades.
planta combustível para
amor.
implorei por pelo menos
um petróleo ralo
correndo pelas artérias
deste chão.
aguardei nas desembocaduras dos ductos.
melancólico arremate já seria mais que
triste.
quem aguenta um velho em queixumes?
arquei com cada gota de minha
caducidade.
carrego minhas antigalhas até com gosto
provo o saibo das petiscadas dos locais
rurais
nos poucos dedos de prosa.
resenho quanto posso até me tornar cansativo
sei lá quando companhia de novo.
nos agrupamentos de tropas eu fico
lá em último, no fundo, olhando as sombras
do sertão. por elas, meço o
quanto de surpresa toca a cada vida.
ainda consigo me admirar do súbito de um
coelho entre hortas. sano os terrenos estéreis
esperando o advento de um jardim
me livrando dos desertos que assolam
minhas planícies pairo em sítios inesperados
refreando o ímpeto de meu cavalo
o céu liberal em suas coordenadas a
posição
do cruzeiro me favorecendo tanto
cruzo propriedades de conhecidos que
saúdam com a ponta de seus chapéus a
poeira levantando vasta e chucra
o esconderijo dos pintassilgos explodem
nas suas zombarias pela coletividade
de que não
disponho.
arribei-me num ímpeto tempestivo,
trombando com a eletricidade da nuvem o raio
confuso dos lampiões,
fazendo trôpego o revés
castanho da igrejinha: senti a descrença no meu maxilar,
era um ceticismo
homogêneo arrefecendo devagar, e, logo após,
nos meus
tímpanos, apurei solidamente a esposa extremosa suplicando por
mim, e esvaindo por mim,
e desesperando por mim, e eu que
mal vinha de me lançar no jogo deste frio velho,
lavrado permanente em bronze
na capa dos volumes angelicais,
absorvi repentinamente o desconsolo mudo do cosmo.
mas eu tenho tanta saudade deles!
dos meus saídos de mim… e da minha velha.
ela cometeu a indelicadeza de se ir primeiro.
e foi sem mais consideração que a minha.
envolta em escuridão e amargura.
e seremos só nós e nossa solidão,
como sempre foi.
duas pedras de gelo
eu sabia que ela viria embrulhada nas
sombras.
por isso assumi a mais cínica e completa
imobilidade de que fui capaz.
porque o inclemente frio
mordia.
com dentes afiados.
e logo o tract prazenteiro da porta de seu
quarto se abrindo.
nenhuma surpresa. as chinelas gastas
se arrastando no piso.
me fiz ainda mais imóvel, como se fosse possível,
com um sorriso de conforto invisível no breu.
me passaria por alguém que já ia no
sexto
ou sétimo sono profundo.
como das outras nostálgicas vezes. o
tract
da porta de meu quarto e uma ansiedade
gostosa em mim.
resmungo surdo dela. sussurro. muito baixinho,
para si mesma.
na certeza ingênua de que eu dormia de
fato.
eu me comovia até a raiz da minha mudez, até o último
floco
de coração.
derretia por aquele velar pelo meu sono.
(– tá frio demais… demaissss…)
um tremorzinho meio afetado no final da semi inaudível
fala.
e o toque materno, protetor, xamânico,
aconteceu.
e o arfar asmático sofrível.
minha singular mãe era uma mulher de peito
pesado.
mas estava levemente controlada,
apesar de nunca totalmente controlada.
com certeza tinha usado o
salvífico inalador há pouco tempo.
eu achava até bonito, aquele doído
sacrifício que fazia por mim.
abandonar as quentinhas
cobertas
e vir arrastando seu peito pesado.
pra cuidar de mim.
às vezes eu me sentia fatalmente culpado.
poderia pôr fim àquilo. dizer: manhê,
eu tô sempre acordado.
deixa que me viro.
mas não podia.
precisava daquele momento de carinho
secreto.
e ela também.
quem sabe até mais do que eu.
mas voltemos ao toque materno!
paramos no toque materno.
primeiro, com muito doce cuidado, ela apalpava meus pés.
(– duas pedras de gelo! como pode?
a pessoa ir dormir num frio desses e não colocar meia?!)
sempre no autodiálogo do sussurro, para não me
acordar.
e ia às trôpegas apalpadelas, no escuro,
em busca da minha caótica gaveta de
meias.
mas o seu terno calor já havia tomado conta do
quarto.
já não era necessária a meia.
mas ela não precisava saber disso.
e jamais saberia.
calça habilmente os meus pés.
como a pessoa podia acreditar que uma movimentação
tão agitada daquelas, não acordaria o outro?!
uma fé muito bonitinha.
levantava os meus dois disformes pés e encaixava
a coberta por baixo
(-- que pé feio, meu Deus! é o pé do pai…).
mas a parte que eu mais gostava era o final.
ela afofava o arrumado.
sim,
dava uma carinhosa pressionada em todos os lados,
para ajustar a coisa.
mas eu não tinha indefesos cinco anos de idade,
nem dez, nem mesmo quinze.
já contava vinte e dois mal-acostumados anos,
marmanjo.
ela sempre repetia: até quando vou ficar
cuidando de marmanjo?
e cuidou.
até o breve fim.
num dos momentos de maior dor da minha vida,
no fim de um longo relacionamento, eu entendi.
nunca,
absolutamente nunca, ninguém mais,
quem quer que seja,
faria aquilo por mim.
e chorei amargamente, porque minha
mãezinha já se tinha ido.
e de fato, escrito em pedra,
ninguém voltará a fazer isso por mim.
e é certo que seja dessa forma.
não poderia ser diferente.
o que só uma mãe faz.
notícias de Margarida
cheio de letargia, veio um doutor discutir o sexo dos anjos.
eu disse: aqui não, ã ã.
arme seu palanque em outra freguesia.
aqui temos alergia a isso
se quer cura para sua doença de tristeza,
para seu mal
de amor,
para sua morbidez de espírito, para seu padecimento
da sorte, conversamos, mas não me venha com liberdades,
com pouca vergonha.
minha barraca de flores é meu mundo.
veja a bondade que tenho: esse cosmo de Petúnias, Madressilvas e Crisântemos,
está todo dia aberto à visitação,
para qualquer um.
beltrano me pede notícias de Margarida, toda a gente quer saber de Rosa.
sou pilhado na indiscrição do olor.
buquê de sonata, jasmim de veludo,
pétalas de violino, explosão de amarílis,
verbena em dó, sândalo,
ré, bergamota,
sol.
no ovário de cada flor um astro me hipnotiza.
eu suporto uma porção de coisas
-- de verdade mesmo --
mas doutor tirado a besta,
ah, por favor!
Pombajira
a sua graça queimou um cigarro na minha bunda.
enxergo tão simétricos os enamorados que correspondem Desejo com Adoração.
se bem que a Constância não é pra gente, até porque somos muitos.
nossa magnitude não comporta.
caídas da cama da gata.
chupadas por ave de arribação.
borrachas de Vênus no carpete do nosso quarto.
caixas de camisinha da nossa Roma Antiga até ontem, resultado dos dias de nossa orgia.
no pretérito me deram um papel amassado, roto, que não lembro mais qual, se de homem, mulher, travesti, animal, besta feroz ou amansada.
sou a mão alheia que amarra o meu espartilho.
circum-navegadora, circum-navegador, circum-navegadore do mar de porra.
sexo, flerte, querença, o desejo,
estremecimento, idílio, galanteio.
me trate ao menos com a Cortesia com que trata uma puta francesa.
escrevo na minha agenda náutica,
no dia crucial de nossa relação:
fudemos.
no dia crucial fui feliz.
comprei vaselina, adquiri um consolo, um plugue escondi.
invisível, a não ser às apalpadelas, ignoto, a não ser ao alívio do escroto.
ignota, ignote.
agnóstico do meu prazer, me exiges nirvana.
nunca prometi que alcançassem salvação no céu da minha boca, mas apenas desafogo.
as desgraçadas, as desonradas, as porradas e esporradas.
tesão nas cuecas, cintas-liga, tapa-sexo.
a esbórnia me levou tudo.
levou-me os dentes. a maciez da cútis.
os pelos do
púbis.
gosto do som da palavra esbórnia, quando pronunciada pelos cafetões, pelos mequetrefes, pelos patifes, pelos cafajestes, pelos bandidos, pelos moleques,
por toda a corja da
Boca do Lixo,
suja, turva, opaca, burra, obscura e espessa,
fosca e sombria, fuliginosa e nublada.
fui metido no carnaval, caçoada, troça, pilhéria, bufonaria, arlequinada, chalaça, motejo.
no dia fatal de nossa Falange dissoluta, encetou-se a Folia de 30 horas.
Fodias, Fodias, Fodias. Sexo fordista.
animalidade, hedonismo, carnalidade, volúpia, luxúria, gula, deleite.
eu aferro-me a entrar para a classe das mulheres honestas.
a classe média das mulheres honestas já me servia.
mas como com tanta libido?
como com tanta licenciosidade?
mas como, como, como? comeram.
e se um bode eu me tornei, se um cachorro virei, tome meu cio por Decreto.
no Juízo Final só poderei alegar em meu favor que pequei em nome do Amor.
minha maior tristeza seria menstruar justamente no dia em que estavas mais potente.
e se eu transei com seu pai, se eu transei com sua mãe, se eu transei
com O seu irmão,
se eu transei com a nata toda da sociedade paulistana, desde os quatrocentões até os ateliês do alto de Pinheiros,
foi por meu cu e risco que o fiz.
e terei que agradecer por esse sêmem raro e parco que me dás?
sêmen de cachorro, de rato, de esgoto.
o bichinho percorre o subterrâneo da cútis da minha virilha, foz do rio do meu ser para o mundo.
as hostes de amantes comparecerão ao funeral?
a quarta-feira de cinzas, o cortejo, as exéquias, o memento mori, o réquiem, o Requiescat in Pace, o mortuário, a marcha fúnebre, a pompa, os dobres a finados,
o necrológio, o ofício de corpo presente, a mortalha,
as lamentações?
mas puta tem direito a isso? À seguro social, à bolsa família, à auxílio funeral?
no dia mortal de nossa relação, eu já apodrecia sob a campa.
ao triste verme que comer o meu cu pela última vez (espero que seja a última mesmo!), deixo essas devassas memórias garatujadas em saco de pão,
memórias dos dias de Saturnália, que foram toda a minha Química Orgânica e a minha Pirotecnia,
o Balé de ocupar-se
com pirocas.
avenida vazia
uma Virgem
Maria munida de
escopeta.
a Madre de Deus com sangue nos olhos.
Estrela de Nazaré com rastro de fogo.
tipo um Motoqueiro Fantasma.
espero que ela e o Anjo vingador encontrem
este
meu escrito.
(ah, como desejo que eles façam jus! e como!)
não me acostumo a deixar pra lá,
eu não, reponho e reapanho
jurisconsulto, expurgo, ataco
os burgos.
se eu dissesse assim, deixa, se
eu negligenciasse, talvez doesse,
mas voltasse à uma relativa paz.
os demais que se importassem
não quero eu, não me
responsabilizo eu.
eu converso com os santos
lhes convenço todos os dias
todos os dias é uma disputa escolástica
tem que sobejar em penitência
a penitenciária apostólica eu
convenço até o papa
mas não dá jogo não tá dando
jogo de jeito nenhum.
dessas cenas que bagunçam
a harmonia do mundo.
aula grátis de euritmia não resolve.
meus paralelismos foram a terra.
algumas pessoas são
desertoras do
afeto.
uma peça desconexa
no sentido íntimo.
meus globos de ver não percebem
aqueles
que não estremecem com uma criaturinha fofa e
peluda.
em frente ao lúgubre Nº 23 da Avenida
vazia.
involuntariamente colecionador
de tristezas.
saio à cata de.
peregrino das mazelas.
encostado num poste,
eu vi o martírio que me apunhalou
mais fundo.
o epílogo da raça humana numa
tarde
de céu escuro.
ah, meu coração, não me acomodei nesse solo de semáforos esturricados,
nesse domínio de pulgas, não me dobrei feito
filisteu
na pândega de ratos homicidas?
não era porventura um equilíbrio
comprometido esse equilíbrio que assombrava,
ter meu cérebro
deitado num pires de mato venenoso?
não era porventura
um delírio intermitente esse outro devaneio, ter minhas palmas
suadas,
meus tornozelos ébrios, lacraias me forçando atalhos
nos miolos, minhas costas assoladas por
mosquitos?
não era porventura um sonho intermitente esse outro sonho, ter
minha fronte
repleta de mariposas, casulos fartos me saindo pelo ouvido,
meu peito ardente coberto de vermes,
minha vista morta comendo escorpiões?
quanto formigamento, quanta dolência, quanto espanto nessa
avenida!
afinal, que porra é essa que vai oprimindo
minha pele?
não confio nessa gente, desconfio,
que não posso contar.
fiz uma caderneta de mazelas, não perco um
lance
rabisco toda peste, desenho até detalhes
tatuo desacordos com verossimilhança assim
posso ter algo a apresentar se me solicitarem
não tomo notas dessas coisas financeiras
catalogo sentimentos, aspirações
não estou te pedindo nada que possua um
lastro material
sabe,
alguém assim
só pode usar uma máscara de
gárgula,
cravejada de pregos por todos os
lados:
abandonaram os gatinhos dentro do saco de
carvão.