por Davison da Silva Souza__
Foto de Polly Sadler na Unsplash
Recife, 14 de maio de 1888
Querida, Silvia.
Espero que esteja bem, te escrevo na intenção que nossa ancestralidade nos conecte — ainda que distantes pelo espaço-tempo — mesmo sem saber onde você está. Escrevo na tentativa de me confortar perante a dor de ter perdido você e as crianças. O sistema escravista foi muito cruel com as populações negras e africanas, em nosso caso, arrancou você, Kalu e Ayka dos meus braços, nos forçou a uma jornada sobre humana de trabalho, sem remuneração, sendo açoitados noite e dia, torturados, com pouca comida (às vezes sem nenhuma), sem nome, sem família, sem memória, roubaram nosso conhecimento, tentaram — e em alguns casos, até conseguiram — que fossemos quase gente… Longe uns dos outros, cada um, mandado para um canto diferente dessa enorme terra-desconhecida. Mas hoje, tenho esperança no nosso reencontro. Afinal, foi assinado um documento que nos dá liberdade. Contudo, isso só se deu por conta da luta de gente negra, após Palmares e Mâles, depois de infinitas vidas ceifadas, de inúmeras pessoas revoltadas, após cada fuga que desestabilizou os sonos dos da casa grande, depois dos sonhos de retorno, de partida, de construção. Finalmente, após séculos, anunciaram nossa liberdade. Em todos os lugares se ouviam os tambores ecoarem, assim, como nos reinos Iorubás e Hauçás, anunciando que nessas terras toda pessoa negra é livre. E a cada batida dos tambores meu coração palpitava mais forte, na esperança de um dia encontrar vocês, na esperança de viver uma vida digna como ser humano, de ser livre. Assim como nossos antepassados foram em África, livres… livres como o sol! Mas hoje, ao continuar a escrita dessa carta, eu acordo melancólico, desesperançoso, angustiado, incerto como as gigantes ondas da Kalunga que vem e vão… Há um embrulho no meu peito que dê tão grande sufoca minha garganta, como a espécie de um nó, que me amarra, imobiliza, me deixando na inércia. Os tambores que ontem anunciaram a liberdade, hoje tocam mais fracos, ritmando a preocupação da nossa gente. Sem terra, nosso povo anda subindo os morros atrás de um pedaço de chão na tentativa de fazer uma casa, plantar uma roça e quem sabe construir uma comunidade. Esse Estado que tanto nos tomou, a quem tanto demos — política, cultural e socialmente — nos jogou ao relento, sem nada. As nossas crianças estão na rua, pois não há escolas para elas, nossa juventude está aflita sem acesso às políticas públicas. As mulheres e homens que ontem construíram esse chão, estão descendo os morros atrás de trabalho, mas não há! A brancaiada diz que não temos qualificações para o mesmo trabalho que exercemos ontem, logo nós, que sustentamos a atividade produtiva desse país por séculos? Logo nós que trouxemos tecnologias de plantio, colheita e construção para essa nação. Nossos mais velhos e mais velhas vagam pelas ruas sem rumo, cansados, abatidos, ansiosos pelo Orum. Os relatos que chegam até nós, é que em inúmeras fazendas ainda há pessoas escravizadas… Parece que o documento de ontem, ainda não chegou em todos os lugares… Hoje é 14 de maio e… O papel na qual escrevo essa carta está encharcado, pelas lágrimas-pretas que do meu olho escorrem, pela incerteza de um futuro digno, pela humanidade que ainda nos negam. Hoje é 14 de maio, estamos sem casa, sem educação, sem trabalho, sem terra… sem nada. Apenas com a esperança de um dia, sermos gente!
Com amor
João Ferreira.