Carta ao meu pai | Davison da Silva Souza

 por Davison da Silva Souza





Fortaleza, 17 de junho de 2025


Sua benção, pai.


Hoje a noite eu não dormi bem, me virei de um lado para outro, mudei de posição, coloquei o lençol debaixo da cabeça, me cobri com o cobertor, movi meus braços e pernas-inquietas na busca de conforto. Mas o alívio que eu buscava não podia se materializar ali, naquele espaço-tempo escuro da madrugada-solitária. Eu precisava dialogar com meu pai. Em 2020, no dia 01 de janeiro, o senhor se desmaterializou, se encantou e se encontrou junto aos/as nossos/as ancestrais. De lá pra cá, houve dias difíceis: como aquele dia em que o senhor ficou desaparecido e procuramos em todo o bairro; dias fáceis: como aqueles dias em que íamos juntos assistir as quadrilhas no festival junino do Sítio Córrego; houve dias em que a melancolia batia forte como um soco na boca do estômago, ou como aquela palmada que o senhor deu na minha mão, a primeira e única vez que me bateu, nos seus olhos eu via o reflexo dos meus olhos-molhados, foi um dia triste para nós dois;  e dias em que a correria me fazia esquecer o luto, assim como o senhor corria para pôr comida em nossos pratos. Em todos esses dias eu estava cercado pelo medo. Desde pequeno, nas ruas-esburacadas do Parque Veras, eu não tinha medo da chegada do medo, afinal, meu pai, aquele negro-homem, jovem e forte não sentia medo — era o que pensava na minha cabeça-de-menino - Mas quando o senhor partiu, me mostrando as possibilidades de amar e de sentir, o medo me alcançou e o maior deles era o do esquecimento. Medo de esquececer seu negro-rosto-marrom com marcas de espinhas, medo de esquecer as ondas do seu cabelo cacheado, medo de esquecer seu sorriso amarELO, medo de esquecer o seu cheiro amadeirado com resquícios de cigarro, medo de esquecer seus gostos, trejeitos, falas e medo de não me lembar quem você foi, ou melhor, quem você é. Até que um dia, voltando de um curso no Centro de Fortaleza/Ce — aquele mesmo Centro que íamos todo fim de ano, comprar roupas, brinquedos e comer aquele cachorro-quente com cheiro verde — dentro do ônibus 353, o Parque Veras, no auto-falante tocava a música “O grande amor da minha vida” de Bartô Galeno — naquele momento meu corpo foi transportado e me vi menino, na nossa casa número 205, na rua São Clemente, ali, do seu lado, escutando na vitrola o disco de Bartô — “Se eu pudesse nesse momento estar contigo meu amor, nessa hora eu não seria um sofredor eu seria o homem mais feliz do mundo”, escutando essa frase, eu me perdi do medo, e a cada gota-salgada que escorria dos meus olhos-tristes um quebra-cabeças ia sendo montando, e eu vi seu rosto, nítido, negro e aquele sorriso-AMARelado refletia o distanciamento do medo. Foi ali que percebi, que por mais que o medo tentasse apagar, as memórias estão para além do espaço-tempo físico, elas se encontram nos sons, cheiros e texturas. Despido do medo, eu, um homem-negro, chorava copiosamente, olhando pela janela do ônibus, tentando segurar cada lágrima, mas eram pesadas demais, e uma por uma elas iam caindo, escorrendo na minha pele-marrom. Respirei finalmente, depois de incontáveis lágrimas, aliviado, pela certeza de que o senhor não cairia no terreno-do-esquecimento, pelo contrário, me senti o “Homem mais feliz do mundo” por saber que no terreno-da-memória, você vive.


Com amor


Davison da Silva Souza, seu caçula.

 


Filho do seu José e da dona Maria, me chamo Davison da Silva Souza, mais um Silva, da periferia de Fortaleza. Mestre em Educação e Ensino (Maie-Uece), professor-alfabetizador da Rede Municipal de Ensino de Fortaleza, ilustrador, cronista e andarilho da imaginação.