O memorando não chegou pelo correio | Fabrício Pinheiro

por Fabrício Pinheiro__



Com minha testa grudada no vidro da janela do carro decido retomar alguns hábitos antigos. Cícero me passa um papel do tamanho da minha unha do dedo indicador, o coloco debaixo da língua, em seguida ele me confessa que voltara a escrever. “Nem eu sabia que estava com saudade de praticar a arte sem ser em matéria merda de assessoria”, confessou, aparentemente ele também retomara antigos hábitos, esse já não era sem tempo.


Estávamos a caminho de uma praia de pescadores que não me recordo o nome, nos arredores de uma cidade pequena, sabe-se que é distante, daquelas distâncias onde o imprevisto se faz presente e gratificante. Eu e Cícero virávamos há três dias pulando de casa de conhecidos para casa de desconhecidos, e vice e versa, com as roupas manchadas, alguns cigarros amassados no bolso, e um envelope sagrado recheado dos produtos que nos levaram até aquela estrada. No carro, Fabiana guiava, não sei dizer há quanto tempo estávamos dentro dele, a dúvida se torna agradável quando decido não dar a mínima, quando o carro passa a fazer zigue-zagues cada vez maiores devido as alucinações iniciarem sua festa na mente descansada da motorista, quando Cícero começa a recitar algo sobre cair de um abismo, quando minha cabeça começa a se fundir ao vidro da janela…


Despertei com um óculos escuros tentando se equilibrar em meu nariz. Nunca me acostumei a usá-los, de qualquer tipo, mas naquele momento ajudava a me defender do sol estalante invadindo o carro, da ressaca acumulada que me causava uma pequena arritmia de hora em hora e a esconder os olhos avermelhados. Fabiana dirigia cantarolando como se nada houvesse acontecido, o rosto ainda era corado e saudável, os dentes uma primazia odontológica; não me recordo o que a fizera aceitar nos levar até um lugar onde nenhum dos três conhecia, talvez, como todos naquele estágio, também tivesse a consciência de que não se tem muito mais a se fazer que não seja desvencilhar-se, aceitar a falta de motivos. No banco de trás, Cícero dormia debruçado sobre um travesseiro, o sossego da respiração e em sua expressão em nada se assemelhavam ao rapaz de urgentes necessidades e imperiosa infinitude dos três dias anteriores. Acordou vasculhando o carro inteiro, arrancou o tampo do porta-malas a procura de algo, ao fracassar na busca, pediu que parássemos imediatamente na primeira biboca que encontrássemos.


Encontramos um vendedor de beira de estrada em uma barraca de madeira apodrecida, o teto era uma lona laranja gasta e com remendos, ali vendiam-se frutas, água e cervejas. Ignoramos de imediato as frutas.


Ao voltarmos para dentro do carro, a procura de Cícero havia acabado. Estouramos nossas cervejas, brindamos e seguimos viagem. Eu trazia entre as pernas um nécessaire que havíamos roubado de algum lugar que havíamos passado nas noites anteriores, tinha um bordado escrito “Jacob”, e era recheado dos mesmos conteúdos que abarrotavam o envelope. O abri para medir as quantidades e logo os papelotes passearam de mão em mão. Assim que o nécessaire retornou para minhas pernas, no horizonte chamuscado pelo sol, ovelhas saltavam dos morros aos céus e desapareciam, Fabiana corria na contramão com a cabeça sobre o volante e os olhos vidrados dando goles repetitivos na cerveja, Cícero se acocou no banco de trás gritando aos palavrões uma Salve-Rainha indecorosa fazendo a cerveja espirrar pelo carro como uma champanhe, as placas de sinalização ficavam cada vez mais difíceis de serem vistas quando se tornaram apenas um vulto listrado e decomposto, até a gravidade retornar insuportável e tudo escurecer.


Quando toda essa maratona começou, Cícero estava preocupado com o meu sumiço — mesmo que nos falássemos diariamente -, e principalmente, de saco cheio de minhas reclamações. “A arte é uma merda mesmo, cara. Ela te abandona no primeiro sinal de procura por uma vida mais digna. E tanto ela quanto o mundo em que tu vives não compactuam com a insolência”, dizia como se fosse algum mentor que não acredita nas próprias palavras, “Ou tu podes atentar para uma hipótese. Aceitar que ninguém pode ser tão bom quanto acha e tentar conviver com a própria falência, ou morrer de fome voltando aos piquetes dos tempos de Universidade, o problema é que agora, o risco é ainda maior, o mundo pode te esquecer ao dobrares a esquina”.


Ele nunca acreditou ou se ressentiu de muita coisa, aceitava que muitas das coisas que faria, e fez, foram sem intenção, ou prazer, estava a par da enrascada em que se metera quando rabiscou seu primeiro conto — quando deu testículos a Mary. Sabia que não era nenhum gênio abastado perambulando por ruelas de grandes capitais europeias, a genialidade até existia, mas ele não teve muito tempo para ela quando lhe foi cobrado a comida. Recebi admirado seu anuncio sereno de que não escreveria mais, parecia entediado, se desfazendo de alguns lixos acumulados na cozinha, sem pesar, sem falta. Fiquei ainda mais, quando anos depois decidiu escrever poemas, mas sem o olhar fumegante de quem acha possuir um dom. Até me surpreender ao dizer meses depois, como se fosse uma conversa corriqueira de uma viagem de carro, que voltara a escrever alguns ensaios. No fundo, sempre esteve a par das durezas que o impediriam de viver a arte plenamente, ele não teria tempo ou imunidade para isso, ou era isso ou morrer de fome, então resolveu subjugar o próprio impedimento imposto, arremessou garrafas enquanto pôde, as seca enquanto pode. Era isso que ele tentava me lembrar. 


Assim chegamos à porta fechada da casa onde ficaríamos, desprovidos de qualquer planejamento e traquejo social, vide o estado calamitoso que se encontravam nossas sanidades. Até hoje não sei dizer a quem realmente pertencia a residência, tenho minhas apostas baseadas em vários flashes da corrida eufórica dos dias que se passaram, mas certeza, apenas das últimas cervejas que trazíamos. Sentamos no chão da varanda e as abrimos para pensarmos melhor no que fazer, um discreto arrombamento ou fazer do carro nossa morada; voltar com o rabo entre as pernas para a cidade não era uma opção.


Nos mantínhamos calmos com o inesperado desabrigo, todos já haviam passado pelos seus, e por alguns outros no decorrer de seus caminhos, eu por exemplo, o tornei quase uma pratica esportiva. Mas naquele momento, dedicávamos apenas à contemplação e a recapitulação. Quem, diabos, teve a coragem de nos oferecer e passar o endereço daquele lugar? Havia uma chave? Matamos alguém? Eram perguntas que se faziam presente entre nossas suposições, assim como as gargalhadas e as caretas ao engolirmos cerveja quente.


Estávamos nos saindo bem no quesito não dar a mínima. Mas como toda lucidez que se aproxima devagar, algumas pontas de desespero começaram a surgir. Cícero se retraiu em seus pensamentos cavoucando sua memória atrás de respostas; Fabiana continuava cantarolando, dessa vez baixinho, quase um resmungo, estava dedicada a se tornar uma vitrola; a irritação começava a me atingir por qualquer motivo, mesmo sem propósito, só não sei dizer se era devido a situação ou um velho hobby que retornava.


Em um sobressalto, Cícero me pediu o nécessaire. Realmente, não nos restava muita coisa dada a conjuntura. O passei, e lá estavam dezenas de papelotes aninhados como filhotes de cegonha, Cícero os ignorou e abriu um pequeno bolso interior, arregalou os olhos ao tatear o que estava dentro, pegou o misterioso objeto e correu em direção a porta. “Segurança em primeiro lugar, cara”, disse com os braços abertos e a porta escancarada as suas costas.


Finalmente éramos salvos pela assistência social da sobriedade. Adentramos a casa com o ânimo renovado, bebericamos até um pouco da água que nos restava, mas tudo foi deixado de lado em nossa primeira visão do interior. Na sala e nos quartos não haviam móveis, algumas teias nos cantos do teto e nas janelas decoravam o lugar, o cheiro de mofo dava o toque requintado do aroma. “Pelo menos tem escápula”, disse Fabiana ao voltar de um dos quartos. Trazíamos redes como exímios paraenses que éramos. No banheiro, o sanitário, apesar de habitado por moscas inquilinas, ainda dava descarga com vigor, o que para mim já aumentava consideravelmente o valor do imóvel.


Faltava a cozinha. Nessas ocasiões se torna o compartimento crucial da casa. Por se tratar de uma cidade pequena, os estabelecimentos fecham cedo, logo uma boa geladeira é essencial para estocar Cervejas & Afins, e um bom fogão para esquentar o que precisa ser esquentado. Fiz uma caminhada receosa até lá, pedindo para que houvessem ratos, mas nenhum corpo em decomposição. Ao entrar, lá estavam os dois, um fogão e uma geladeira. Voltei aliviado à sala para dar as boas novas. Mesmo assim, apenas um pensamento me dominava: “Esse gala-seca mandou a gente aqui só pra dar uma arejada na casa dele”.


As malas jogadas devidamente ao chão e a casa estando apta para o convívio, voltamos à varanda para analisar a vizinhança, um estudo sociológico do que, onde e até quando poderíamos fazer o que bem entendêssemos sem nos preocupar com os flagrantes e interrupções inconvenientes. Além do fato de estarmos em um dos lugares mais afastados da praia — estrategicamente propício para desovas, inanição e esquecimento —, com entusiasmo descobrimos que o vizinho da frente era um bar de palafita com um grande trapiche que ficava para a praia — e estava aberto.


Fomos recebidos por um ser minúsculo de shorts, sandália e sem camisa, pele cabocla acentuada pelo sol, com corpo de fisiculturista no peito e nos braços, e de papudinho na barriga e pernas, os cabelos eram lisos e negros, os olhos puxados e marcados, e a boca protuberante sustentava um bigodinho mandrake safado. Se chamava Laércio, O Dono do Estabelecimento & Pescador. Nos recebeu como velhos conhecidos, éramos seus primeiros clientes, já eram quase 16 horas, e parecia que seríamos os únicos. Laércio trouxe uma cerveja sem perguntar qual queríamos, aceitamos sem pestanejar, estava gelada. Arrumou uma mesa na sombra para ficarmos, mas optamos pelas que estavam no sol que batia no trapiche do bar. Meio a contragosto Laércio nos seguiu, escolhemos uma mesa e começamos a entornar os copos de cerveja. Enquanto isso, ele dava dicas do que fazer no lugar e se lamentava do seu dia de pesca não tão afortunado como o de Sinval; imaginei se tratar de seu grande rival de pesca, fiquei curioso com o embate, mas Laércio não durou muito e se recolheu para sombra. A caixa de som aumentou alguns poucos volumes, tocava um bregoso só com as marcantes, tudo, absolutamente tudo, estava propício.


A tarde caía, as cervejas desciam cada vez menos geladas, todos em silêncio, eu fechava e abria o nécessaire apreensivo. De repente um pudor inesperado abateu o grupo.


Com o sol mais ameno, Laércio se aproximou novamente, apoiou a mão no encosto da minha cadeira. “Vocês fumam maconha?”, disse. Nos entreolhamos desconfiados. Só faltava o velho Dono do Estabelecimento & Pescador ser um milico aposentado que para espantar o tédio dava uma de investigador disfarçado da narcóticos nas horas vagas. “Fumamos. E o senhor?”, confessou Cícero emudecendo o grupo que já aguardava culpado a sentença. O velho se retirou dando uma risadinha traquina. Ficamos um pouco tensos, eu já esperava que ele fosse buscar reforço atrás do balcão. Ao voltar, trouxe entre os dedos uma vela assustadora, acendeu e botou na roda. “Experimentem isso aí e fiquem à vontade. Ninguém vai aperrear vocês aqui. Vocês estão na casa do Tadeu né?”. Ninguém sabia quem era Tadeu, ou pelo menos não lembrava quem era, mesmo assim todos responderam afirmativamente. Deu mais alguns tragos e voltou para trás do balcão.


Sem mesmo chegarmos a metade do fumo, todos já estavam grudados em suas cadeiras como se fossem um navio cargueiro, as glândulas salivares ressecadas como uva passas, a pressão seria questão de paciência — o velhote entendia das coisas. Antes que minha percepção do tempo se perdesse por completo, decidi dar uma boa observada no, agora, Narcótico Laércio.


Isso pode ser um completo devaneio da minha cabeça, resquícios deturpados daqueles tempos, quem vai saber? Eu mesmo não tenho propensão alguma em acreditar em minha própria opinião, quiçá do que escrevo. Nota: Os Arremedos de Borges estão ficando cansativos. Mas posso dizer que mesmo aquele velho simpático, compartilhador de cannabis, tinha das suas. Não foi difícil saber. Com o final da tarde se aproximando, a frequência de pessoas em motos, bicicletas ou a pé que chegavam ao bar aumentou, porém elas nunca entravam, eram atendidas na entrada por Laércio que voltava de lá sempre contabilizando algumas notas e as guardando no bolso. E isso se seguiu frequente e indiscriminadamente durante horas.


Com os efeitos da erva do pescador mais controlados, fui até seu encontro. Pedi uma cerveja e joguei o nécessaire no balcão. “Muito bem Seu Laércio! O senhor tem as manhas de dizer o que tem aqui?”, abri o nécessaire, em seguida o encarei. O velho pegou alguns papelotes analisando minuciosamente com exímio olhar de joalheiro. “Bem que o Tadeu disse que vocês viriam preparados”. Ele buscou calmamente uma cerveja no freezer e mais dois copos, a abriu e nos serviu, com um gole secou o seu, então deu início ao que sabia fazer de melhor, conversar sobre a vida.


O Dono do Estabelecimento & Pescador Laércio nada mais era do que um bon vivant operário, daqueles que almejava com afinco o estilo de vida, mas tinha que cortar um dobrado para tê-la. Era de cidade grande. A família financeiramente se segurava sem muitos sustos, não caía pra baixo muito menos pra cima. O colégio pago mensalmente sem atraso e as viagens anuais sempre estavam dentro do planejamento familiar. Os amigos eram os de praxe, bem mais condicionados que ele, lhe apresentaram muitas das coisas que almejou e batalhou para ter até se mudar para a vila de pescadores, inclusive os famigerados entorpecentes, nos quais se tornaram praticantes assíduos. Se formou em Publicidade, faculdade paga. Era educado, bem quisto e um fanfarrão com classe, a mascote dos Pais & Amigos. Foi através de um deles que começou a trabalhar em agências publicitárias. Rodou por meia dúzia delas, foi na segunda ou terceira que teve a grande sacada, traficar por lazer aos coleguinhas de trabalho marofinhas. Depois que juntou uma grana que achava razoável se mandou do país. Nesse ponto, pedi que deixasse para o momento adequado suas peripécias numa tentativa de encurtar a história, tudo para mim estava sendo datado demais.


Continuou. Quando o dinheiro apertou, pegou a mala e alguns bibelôs de onde passou e voltou. Novamente se fez presente no círculo de Pais & Amigos. Repetiu o esquema até envelhecer, até voltar de Cuba. Essa última vez, voltou desmotivado, acredito eu, sem criatividade, de fanfarronice o que sobrara fora apenas as bochechas inchadas e arriadas. Não procurou o antigo círculo caça níquel, nem mesmo um telefonema para matar a saudade. Segundo o próprio, nada de especial acontecera em Cuba. “Eu estava cansado, estava fazendo errado”, disse. Juntou o que lhe restava de dinheiro e suas preciosas mudas que passou a cultivar com o tempo, e se mandou para a vila de pescadores, onde aprendeu a pescar, ser dono de bar, além de um necessário “traficante social”, assim se intitulou. Conheceu o desconhecido Tadeu ainda pequeno, e foi ele quem iniciou a educação química do menor.


Ao terminar, em um outro grande gole secou o copo escancarando um sorriso forçado. Ficara entediado, assim como eu. No caminho de volta para a mesa, relativizei sobre a história de vida de Laércio, o julguei com o direito que eu me dava, repetindo baixo com o olhar fixo no chão — “Datado! Datado!”. Fui recebido por beijos e abraços pelos meus dois companheiros de aventura que estavam a quilômetros de distância de mim em seus voos, me desvencilhei com esforço para sentar na cadeira, os olhos estalados de ambos me indagavam preocupados. “Ele não é detetive da narcóticos, é apenas mais um desgraçado como nós”, aceitei.


“Vem meu amor, vem comigo, vem sambar. Ualá, ualalá”. Assim que a noite chegou, Laércio também mudou o tom da música ambiente, o efeito causado foram nécessaire e envelopes abertos com os pudores categoricamente vencidos. Não havia nada a se fazer, tanto lá quanto em Tóquio. Os problemas que se arrumam no percurso advêm do tédio, ou dos invejosos, os mais pautados dirão se tratar de ganância. A criatividade comprova-se um monte milenar avistado do outro lado do oceano, a esquizofrenia surge como uma dose agradável e perspicaz. A noite libera seus efeitos como o mar e o céu fizeram desde o princípio, é impossível negar o convite para viajar até seu fim, mesmo que meteoros caiam, vulcões entrem em erupção, é inegável, sua criminalidade de trovadores sempre prevalecerá, nem que Jorge venha para relembrar. “Cara, ou a gente para com esses tiques de genialidade afetada ou se livra de vez das amarras da punheta prosaica”, assim, depois de me cutucar levemente no braço, Cícero me despertava do limbo em que eu estava entrando.


Laércio foi embora deixando a geladeira de cervejas que ficava do lado de fora sem o cadeado, ao lado dela um engradado vazio para colocarmos as que fossemos consumindo, no dia seguinte acertaríamos tudo. Olhei para ele com desconfiança, poderia ser uma armadilha, dias atrás eu havia roubado um nécessaire, enquanto Cícero a chave da casa de praia de um desconhecido, comecei a dar olhadas assuntosas para Fabiana e Cícero para avisa-los, arrisquei até uma tossida cênica, nada mais era que a paranoia dando seu primeiro cortejo.


Depois que nos despedimos, imaginamos por alguns segundos que finalmente extravasaríamos como tanto esperávamos, mas o entusiasmo nunca dura até a chegada do momento. Sentamos em silêncio, um assunto ou outro sendo discutido sem se alongar, a escuridão da praia a nossa frente, zíperes sendo abertos, envelopes dobrados, vidro batendo lentamente contra a madeira, o mar orquestrando ondas sinfônicas. Nada se via, a não ser os três assombrosos seres no trapiche do bar.


Quando os ouvidos se acostumaram, o redemoinho da exaltação tomou novamente o grupo. Fabiana defendia uma tese quanto a importância da visão em relação ao som baseada no mar, mar que não víamos, apenas escutávamos — ela preferia a visão. Nessas horas, Fabiana tomava o papel da jornalista que era, e incorporava os trejeitos e vícios de linguagem de todos os seus professores do seu tempo de Universidade, pelo menos era o que eu gostava de imaginar, ela congregando Loureiros & Rosallys da vida em sua performance. Diz que a visão é excitação, a porta para todo o desenvolvimento, argumento ao qual Cícero rebate — “É porque a senhora não usufruiu como deveria do tele-sexo”.


Não sei dizer se foram as lembranças eróticas junto ao telefone fixo, mas Cícero ficou irrequieto. Existia sempre um momento na noite em que ele necessitava fazer algo que, geralmente, destoava da proposta; talvez por achar que uma hora tudo ficasse maçante, talvez para não definhar. Virou-se para mim me observando por alguns segundos, soltou um sorriso tímido e me bateu no ombro. “Hei cara… Vamos apostar uma corrida?”. Neguei. “Vamos correr”. Me levantei para buscar outra cerveja, depois que servi os copos ainda insistia. “Bora, mano! É só uma corridinha de leve”. Ao perceber que não haveria negociação, ele desceu para praia junto com o copo de cerveja. Eu e Fabiana tentávamos enxerga-lo em meio a escuridão da praia, aquela escuridão que se vê, mas não enxerga. Quando o perdemos de vista, nos desinteressamos e voltamos para nossas cadeiras — poderia ter mudado de ideia e ido tomar um banho de mar. De repente se ouviu um eco de pisada forte na areia que se aproximava e distanciava, às vezes uns gritos ofegantes que também se distanciavam e aproximavam junto com as passadas. Atentamos novamente para a procura na escuridão. Até que surgiu aos nossos olhos Cícero, o vulto velocista solitário da areia, correndo de um lado para o outro como um Hermes ensandecido. Em uma dessas idas e vindas do vulto, os gritos e as pisadas cessaram, havia finalmente se cansado.


Já se passavam alguns minutos preocupantes quando Cícero ressurgiu. Andava com dificuldade, manquitolando. Ao se aproximar, olhei para baixo e previ o desastre. Sentou-se apoiando o pé na mesa. “Caralho, bicho! Acho que quebrei o pé”, disse sem alarde, tentando encher o copo de cerveja. Como já estava prestes a amanhecer, fizemos uma compressa com as garrafas de cervejas geladas no pé do enfermo, e aguardamos. O sol surgiu pedindo mais algumas cervejas como se fosse meio-dia, junto as últimas doses de devaneio. Depois que a euforia se foi, eu e Fabiana carregamos Cícero para o carro e fomos até a casa buscar as malas. Antes de partirmos, como não éramos mais pessoas que saíam sem pagar, e com a inevitável volta antecipada, pagamos a conta. Esvaziamos um dos papelotes para colocar o dinheiro, e o depositamos dentro do engradado, Fabiana tirou um pedaço de papel do bloco de notas que trazia na bolsa — como grande jornalista que era — e deixou um recado para O Dono do Estabelecimento & Pescador. “Laércio, estamos quebrados, isso era tudo que tínhamos. Esperamos que dê”.





Fabrício Pinheiro é paraense nascido em Óbidos, ainda pequeno foi com os pais para Santarém onde foi criado e fez seus primeiros escritos nos projetos que inventava com os amigos para a Feira de Ciências do colégio onde estudava. Se mudou para capital paraense, Belém, onde fez universidade e se formou em Comunicação Social, dando continuidade à escrita criando roteiros para trabalhos em grupo e empurrando algum ou outro conto para que seus professores e amigos avaliassem. Depois de formado, começou a trabalhar como produtor de set no cinema nacional com a escrita ficando em segundo plano. Em 2017 se mudou para São Paulo e se dividiu entre duas paixões, o cinema e a literatura, essa última se fazendo valer, começando a publicar seus textos de forma independente. @fabricpin