A auto-mise-en-scène – ou o humano assistindo-se?

 por Luís de Barreiros Tavares__



Procuro um homem”, pergunta Diógenes de Sinope (“o cínico”), com sua lanterna (falecimento — 323 a.C.). Pintura: “Diógenes sentado no seu tonel” — Jean-Léon Gérôme (1860).



Poeiras da Filosofia III


O discurso é necessariamente, desde que o seja, um discurso sobre algo; que seja sobre nada, é impossível.

Platão


Desde tempos imemoriais, o humano regista, pela técnica, algo sobre si no mundo. É a memória, desde a arte Paleolítica ou recuando ainda mais, por exemplo: “o acoplamento córtex/sílex” (Bernard Stiegler). O humano fala de si. Narra-se. Conta-se — precisamente a si próprio — uma história sobre si e sobre o mundo.  Não por acaso, nós, humanos, pretendemos o domínio total do planeta, com as consequências e sinais visíveis que conhecemos. O humano diz algo sobre algo que, no fundo, mais não é do que ele. Ou em grande parte ele e o mundo. Também no legein ti kata tinos, o “dizer algo sobre algo”, em Aristóteles (De Anima, 430 b 26), poderemos entrever este autos (grego: o mesmo) do humano, não desprimorando o alcance vastíssimo do pensamento do Estagirita neste passo e em todo o seu pensamento. O mesmo para o passo de Platão (O Sofista, 262 e 6-7 – ver acima epígrafe): “O discurso é necessariamente […] um discurso sobre algo” (“Logos anagkaion […] tinos einai logon]”). O passo de Aristóteles já está implícito no de Platão, como assinala Giorgio Agamben (A Potência do Pensamento, p. 136).

Hoje, ocorre assistir, em tempo real, no imediato, aos acontecimentos. Dois exemplos flagrantes e já históricos, entre muitos outros: a primeira transmissão em directo — “ao vivo” — de uma guerra (Guerra do Golfo – 1991); a explosão provocada pela colisão do Boeing na segunda Torre Gémea é transmitida em directo pelas televisões em todo o mundo (11/09/2001).

Talvez por isso, o grande compositor alemão Karl Heinz Stockhausen declarou, com uma especial dose de ironia — não sem provocar grande polémica — que o assalto às Twin Towers tinha sido “a maior obra de arte de todo o cosmos”. É preciso não ler isto à letra. O 11 de setembro foi um acontecimento-espectáculo por excelência. Repare-se também que as torres parecem contemplar-se a si mesmas, ou como uma autocontemplação de um mesmo ser. Esta não é a favorável contemplação — ou meditação — de que, por exemplo, os orientais e médio-orientais falam (budismo, sufismo islâmico, etc.). Trata-se antes de um símbolo maior da pretensa hegemonia americana e ocidental obstinadamente tecno-capitalista (com Deus, o dinheiro — Benjamin, Agamben). 

Um dos maiores riscos actuais é, precisamente, a tentação — já o tinha dito num outro lugar — de a humanidade assistir ao seu próprio fim, com o apocalipse (que significa em grego “revelação”) de uma guerra nuclear à escala global. E agora encontramo-nos nesse limite. Não será este o outro lado do espelho? Não haverá aqui um complexo entrelaçamento mesmo/outro? O humano assistindo-se, ao mesmo tempo, enquanto se assiste a si mesmo e enquanto se assiste como outro?

Se tivermos em conta este tempo, este tempo presente que vivemos — no próprio dia ou nos próprios dias que decorrem — no sentido de uma constatação, então, talvez possamos viver a nossa vida, não só como “a vida real”, a que é mais imediata e digna de ser vivida, mas também como uma espécie de filme (o lado ficcional que a vida também partilha). Qualquer coisa a que também assistimos e nos encanta. Qualquer coisa como um desdobramento, ou duplicação, à qual, mantemos — ou podemos manter — ao mesmo tempo, uma certa distância. Sem um pendor cego de narcisismo. Não será este um tipo de assistência favorável? 


Na minha opinião, é apenas a curiosidade que faz acorrer à margem para ver um navio que a tempestade faz submergir.

Voltaire, citado por Blumenberg



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Post scriptum

E ver vinha de ver, e se movia

por um agora de alma

onde acender-se a língua

iluminava

a base que pensarmos mais ainda

nos pensava.


Fernando Echevarría

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Fontes

AGAMBEN, Giorgio (2013). A Potência do Pensamento. Tradução de António Guerreiro. Lisboa: Relógio D’Água.

AGAMBEN, Giorgio: https://blogdaboitempo.com.br/2012/08/31/deus-nao-morreu-ele-tornou-se-dinheiro-entrevista-com-giorgio-agamben/

ARISTOTE (1934). De l'Âme [Περὶ Ψυχῆς — De Anima]. Traduction nouvelle et Notes par J. Tricot. Paris: Vrin.

BLUMENBERG, Hans (1990). Naufrágio com Espectador — paradigma de uma metáfora da existência. Tradução de Manuel Loureiro. Prefácio de José A. Bragança de Miranda. Lisboa: Veja — Comunicação & Linguagens.

ECHEVARRÍA, Fernando (1974). A Base e o Timbre. Lisboa: Moraes Editores.

PLATON (1925). Le Sophiste. Éd. bilingue. Tradduction par Auguste Diès. Paris: Les Belles Lettres.

STIEGLER, Bernard (2018). La Technique et le Temps – T. 1, 2, 3. Paris: Fayard.

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O estar cá e o estar lá — ou a interrogação da palavra | Caliban — 01/06/2025 — “Poeiras da Filosofia II”






Luís de Barreiros Tavares nasceu em Lisboa em 1962 e licenciou-se em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa (2007). Autor de alguns livros, entre outros: O Acto de Escrita de Fernando Pessoa; Em Roda Livre, com Eduardo Lourenço; Sulcos, com Jean-Luc Nancy; 5 de Orpheu (Almada — Amadeo — Pessoa — Santa Rita Pintor — Sá-Carneiro). Colaborador regular nas revistas “Nova Águia”, “Caliban”, “Triplov”, “Mirada (Br)”. Publicações nas revistas “Comunicação e Sociedade”, “Comunicação e Linguagens”, “Pessoa Plural — Brown university”, “A Ideia”, “Philosophy@Lisbon”, ”Zunái (Br)”, “Suplemento acre (Br)”, “Grou Cultura & Arte (Br)”, etc. Vice-diretor da revista “Nova Águia”. Membro do Conselho Consultivo do Movimento Internacional Lusófono (MIL). Editor das edições-vídeo “Passante”. De um modo cifrado, mantém-se artista plástico. Já deu umas aulas. Responsável pelo espólio do poeta Manoel Tavares Rodrigues-Leal.