Ditirambos para o fim do fim do mundo, de Mattos Rodrigues

 por Taciana Oliveira |



Ditirambos para o fim do fim do mundo, de Mattos Rodrigues

 

Publicado pela Editora Patuá, Ditirambos para o fim do fim do mundo insere-se na cena da poesia contemporânea brasileira como um gesto de força ritualística e iconoclasta. O título já anuncia a proposta: resgatar o ditirambo, forma poética de celebração dionisíaca na Grécia Antiga, para repensar os limites da linguagem, da experiência e do próprio conceito de fim. Rodrigues entrega uma escrita que mistura canto, grito e manifesto. Seus poemas, muitas vezes longos e em fluxo, assumem cadência litúrgica atravessada por imagens de colapso e renascimento. Há ecos de T. S. Eliot, Roberto Piva e Torquato Neto, mas também um gesto singular: transformar a devastação em celebração, o desencanto em êxtase coletivo.

A poesia aqui não é encantamento, mas combate: “O fogo de Shiva vai tomar a cidade”, anuncia o poeta, num tom profético que mistura mitologia, política e visões apocalípticas. As cenas urbanas se fundem a referências bíblicas, filosóficas e pop, criando um caldeirão de intertextualidades. Ao invés do “fim do mundo” como evento súbito, a obra reflete sobre a percepção de que tudo já acabou — restando somente sua lenta derrocada cotidiana. Nesse cenário, os poemas funcionam como força e reinvenção, propondo comunas afetivas, festins coletivos e insurgências contra o desencanto.

Dividido em seções como “Posfácio”, “Hagiografia”, “Noite no Ocidente”, “Cerimônias” e “O Nome do Pai”, o volume organiza um percurso entre liturgia e ruína, sempre em chave polifônica. O autor costura filosofia da arte, crítica social, cultura pop e imaginário mítico, resultando numa poesia verbivocovisual, que clama por leitura em voz alta e quase convoca o corpo do leitor para a performance. Ao mesmo tempo, há uma forte dimensão política: os poemas denunciam desigualdades, ironizam instituições e suplicam por novas formas de comunidade. Ditirambos para o fim do fim do mundo é quase um ritual de linguagem que desafia o leitor a atravessar ruínas e ressurgir em novas formas de sensibilidade. Ao reinventar o ditirambo em chave contemporânea, Mattos Rodrigues converte o apocalipse em celebração e afirma a poesia como espaço de insurgência coletiva, capaz de confrontar o desencanto e abrir caminhos para a reinvenção do humano.

 

Poemas do livro:

 

EM CATARSE 

Nas paredes do bar, um cartaz: 

A GRANDE RECUSA! 

Cê cola na minha peça 

Que rola em todo lugar 

Não tem palco nem chão 

Coxia ou teto 

Não há texto taxa & os testemunhos 

fenecem com as rosas 

com o povo 

Só queda o convite: 

 

traga o teu quinhão 

As sandices e tomates em putrefação 

Repudiar a mise-en-scène 

da nossa etérea encefalite 

Ciente e refém da noção 

Não há arco de redenção 

Cliente, refém 

Camus, Casares, Marcuse 

Não há catarse algures 

 

HALO 

Eu trago um anjo dentro do peito 

que deixo sair em passeio nos dias úteis, 

nos horários comerciais 

Sem solstícios, equinócios; 

Sem comícios. 

Dócil, prateado, ele debanda 

& retorna adágio ao domicílio. 

Com a coleira mais frouxa, o sapato mais gasto, 

ele se encerra na cela do meu coração; 

ele caçoa de tudo que calo 

& amiúde faz de conta, 

 

cada vez menos fiel à ironia 

cada vez menos amiúde 

que atira a chave ao ralo. 

 

QUE DIZEM AS PEDRAS  

DEBAIXO DO ASFALTO 

 

DAS MÉTRICAS DAS RIMAS DOS LEMAS DOS TEMAS

DAS CRASES DAS CRISES TUDO É CRISE A MAKE É

CARA A CARNE É TRISTE NINGUÉM TE LÊ TORQUATO

PIVA RIMBAUD E MALLARMÉ TUDO EXISTE E ACABA

EM REPRISE TUDO REPRISA E ACABA EM DEMODÊ

 

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Mattos Rodrigues — Natural das sul-mineiras grelhas de São Lourenço, navegante nas luzes enceguecedoras de São Paulo. Participou do FENAC de 2017, com obra premiada pelo concurso jovens compositores. Desde 2017, coleciona meia dúzia de poemas participantes em antologias poéticas nacionais, publicando em 2023 o livro Das cinzentas entranhas da metrópole de bolso pela editora TAUP. Além da literatura stricto sensu, canta e compõe em carreira solo e com as bandas BAQUE!, Doce Creolina, EletroRadio e Antiaderentes, tendo lançado ao todo cinco EPs e um álbum (Tia Maria’s Pensão & Bistro, de 2020) que podem ser encontrados em mídia física e digital. Também escreve sobre filosofia da arte, teoria crítica e viagens em geral na publicação Profanas Iluminações no Medium.




Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo”. Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.